Espanha

As 1600 páginas que deixam Rajoy a tremer

Foto Getty

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Em Espanha pede-se a queda do Governo, de Rajoy, do PP. Em causa estão suspeitas gravíssimas de dinheiro sujo

Texto Angel Luís de la Calle, correspondente em Madrid

O primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, atravessa o momento mais crítico da sua segunda legislatura. A sua permanência, e do grupo político que o apoia, o Partido Popular (PP, centro-direita), à frente do Executivo que governa o país encontra-se seriamente ameaçada. O acórdão de 1600 páginas proferido quinta-feira pela Audiência Nacional no caso de um dos muitos esquemas de corrupção descobertos nos últimos anos, e que envolvem diretamente o partido do Governo e vários dos seus dirigentes causou indignação em toda a sociedade espanhola e entre os grupos mais importantes da oposição, que estão dispostos a destituí-lo do cargo, através de uma moção de censura ou da pressão da maioria no sentido da convocação de eleições gerais antecipadas.

A sentença em questão sublinha designadamente que o Partido Popular tinha uma contabilidade paralela, que utilizava dinheiro sujo para pagar bónus aos seus dirigentes e que, a partir de 1989, se financiou durante muitos anos de forma ilegal e irregular. Numa conferência de imprensa urgente, ao meio-dia desta sexta-feira, Rajoy garantiu que nenhum membro do seu Governo está envolvido na sentença (de que haverá recurso) e qualificou a moção de censura promovida pelo PSOE de puro oportunismo político.

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Esta sexta-feira de manhã, o secretário-geral do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), Pedro Sánchez, entregou ao Congresso dos Deputados a documentação necessária para requerer uma moção de censura a Rajoy, apresentada pelo próprio Sánchez como candidato à chefia do Governo. Até agora, recebeu apoios claros do Podemos, dos partidos independentistas catalães Esquerra Republicana de Cataluña (ERC), Partit dels Democrats de Catalunya (PDeCat, o partido de Carles Puigdemont), dos valencianos da coligação Compromís e dos representantes da esquerda radical basca do Bildu. Limitado pelo acordo de governação assinado por Albert Rivera e pelo próprio Mariano Rajoy, o Cidadãos, cujos votos são decisivos, tem dúvidas quanto à forma de atuar. Rivera disse quinta-feira que “há um antes e um depois” da sentença: o seu grupo ainda não decidiu se deve apoiar a moção de censura ou reservar esse apoio para quando Rajoy rejeitar a proposta da sua organização de dissolução das câmaras legislativas e convocação de eleições antecipadas. Mais uma vez, o Partido Nacionalista Basco (PNV) passa a ser decisivo: os seus cinco deputados, somados aos dos partidos atrás mencionados que apoiariam a iniciativa do PSOE, totalizariam 179 votos, ou seja, mais do que os 176 que constituem a maioria parlamentar absoluta. É esse o número mínimo necessário para a aprovação da moção de censura. O problema é que o PNV assinou recentemente um pacto com o Governo de Rajoy que permitiu que este fizesse avançar o Orçamento geral do Estado para 2018.

Pedro Sánchez, líder do PSOE FOTO GETTY

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Esta é apenas uma das dores de cabeça com que Mariano Rajoy começou um dia bem negro da sua longa carreira política. Perante o extenso acórdão emitido pela Audiência Nacional e relativo ao processo conhecido como “caso Gürtel”, vários autores de ações privadas estão a estudar a hipótese de apresentar queixa e solicitar a instauração de processo penal contra o primeiro-ministro, por ter mentido quando compareceu em tribunal como testemunha. A sentença salienta que os argumentos de Rajoy para negar a existência de uma contabilidade paralela no PP são “inverosímeis”, face às numerosas provas documentais que sustentaram o processo. O esquema “Gürtel” designa uma rede perfeitamente organizada através da qual, recorrendo a intermediários (o principal é Francisco Correa, condenado a 51 anos de prisão), empresas adjudicatárias de obras públicas entregavam aos tesoureiros do PP montantes correspondentes a percentagens de 2% ou 3% do valor da obra adjudicada. Esse dinheiro era depositado em contas bancárias não declaradas, movimentadas, por exemplo, pelo tesoureiro do partido, Luis Bárcenas (condenado a 33 anos de prisão e a sua esposa a 15, por ter desviado parte desse dinheiro ilícito para as suas contas particulares). As quantias que alimentavam a caixa oculta do PP serviam para pagar bónus a altos funcionários do partido e do Governo (entre os quais, alegadamente, o próprio Rajoy), financiar atos eleitorais em toda a Espanha e encher os bolsos de alguns conhecidos dirigentes.

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A amplitude do escândalo originado pela comprovação judicial da sua existência, em diversos organismos associados ou relacionados diretamente com o PP e com alguns dos seus dirigentes, vem juntar-se a outro sobressalto não menor ocorrido dias antes, quando um juiz ordenou a detenção do ministro do Trabalho e porta-voz do Governo de Aznar, Eduardo Zaplana, acusado de, alegadamente, cobrar comissões ilegais enquanto ocupou o cargo de presidente da Generalitat valenciana. Zaplana, que já está detido, personifica um tipo de comportamento muito generalizado no PP nos anos 1980 e 1990, período em que a prática de corrupção, o enriquecimento pessoal e o desprezo pelas mais elementares regras de ética constituíam elementos habituais da paisagem política.