Henrique Raposo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

O sangue está nas mãos deste e de outros juízes

Contactos do autor

O juiz achou que devia deixar solto um homem que agrediu a filha grávida quando esta recusou testemunhar contra a mãe Foto Fernando Veludo/Nfactos

O juiz achou que devia deixar solto um homem que agrediu a filha grávida quando esta recusou testemunhar contra a mãe Foto Fernando Veludo/Nfactos

O sangue está nas mãos dos juízes. O sangue está nas mãos dos magistrados que desvalorizam os casos de violência sobre as mulheres. E é bom que se use a frase “violência sobre as mulheres” e não a expressão eufemística “violência doméstica”. Aquela segunda palavra da expressão, “doméstica”, retira-lhe a carga odiosa, cobre-a com o manto suave do lar, retira-a do olhar público. Em casa ou na rua, violência é violência, não leva adjetivo. Em casa ou na rua, homicídio é homicídio. Nenhum homicídio pode ficar atrás desse biombo, "violência doméstica”. Em Portugal, entre 30 e 40 mulheres são assassinadas todos os anos por maridos, ex-maridos, amantes e o raio que os parta. Este sangue, repito, está nas mãos dos juízes que há décadas desvalorizam esta vaga anual de homicídios, que é o ponto mais visível deste tipo de violência. Os 40 feminicídios são a face mais dramática de quase 40 mil casos anuais de violência. É uma vaga tão anual, tão normalizada e tão naturalizada como a vaga de incêndios. Será que os juízes só vão mudar de atitude quando tivermos um Pedrógão “doméstico”?

Perante este tipo de sentença, os homens sentem que a sua violência até pode ser legítima, como se fosse uma espécie de “legítima defesa” da honra do macho lusitano

Este juiz do Porto é um caso extremo e caricatural desta atitude generalizada. Tão ou mais chocante do que o argumentário da personagem é o facto de estarmos a falar da confirmação (pela Relação) de uma pena suspensa. Os homens que violam e espancam as próprias mulheres nunca recebem penas efetivas de prisão. Neste caso sórdido, marido e amante juntaram-se para espancar a mulher, sendo que o marido usou um bastão com pregos. Houve conluio e extrema violência. Onde está a pena efetiva? Os cidadãos em causa só receberiam penas efetivas se tivessem espancado outro homem na via pública? Sim, o sangue está nas mãos dos juízes. O flagelo da violência sobre as mulheres tem esta dimensão em Portugal porque a lei não funciona como dissuasor. Perante esta e outras sentenças, qual é a reação das mulheres? É continuar a viver com medo, é continuar a pensar que não vale a pena apresentar queixa; mesmo quando os casos chegam a tribunal, eles nunca sofrem consequências e continuam à solta, percorrendo as mesmas ruas que elas. Perante este tipo de sentença e argumentário judicial, qual é a reação dos homens? Sentem que a sua violência não é vista como grave pela sociedade, aliás, sentem que até pode ser uma violência legítima, como se fosse uma espécie de “legítima defesa” da honra ofendida do macho lusitano.

No ano passado, Adelino Briote degolou quatro pessoas (uma delas grávida). Porquê? No contexto do seu divórcio, que ele nunca aceitou, estes quatro vizinhos recusaram testemunhar em seu favor. E agora repare-se: esta vingança só foi possível porque Adelino não estava preso. Ele já havia agredido a sogra e a própria filha (também grávida), porque elas haviam tomado o partido da ex-mulher. O juiz deu-lhe pena suspensa. O juiz deu pena suspensa a um homem que agrediu uma filha grávida. O sangue está nas mãos deste e de outros juízes.