INDEPENDÊNCIA DE MOÇAMBIQUE
“Um passeio entre amigos”
UM ÚLTIMO ADEUS Arriar da bandeira portuguesa na cerimónia de Independência de Moçambique, a 25 de junho de 1975, no Estádio da Machava, em Lourenço Marques (atual Maputo) FOTO EDUARDO CHALBERT “IMAGEM CEDIDA PELO ANTT”
Sob uma chuva torrencial, há precisamente 40 anos, um marinheiro português arriava pela última vez a bandeira que marcava a presença colonial no Índico. Moçambique tornou-se independente, a maioria dos portugueses retornou à metrópole e o alto-comissário, almirante Vítor Crespo, trouxe consigo o estandarte nacional que o Expresso encontrou no Museu Militar de Lisboa. Mas antes disto houve negociações, abraços, tensões raciais e êxodos que marcaram para sempre a história dos dois países.
TEXTO JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA e IRYNA SHEV
A guerra em Moçambique tivera início em 1964, protagonizada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). O seu principal líder, Eduardo Mondlane, fora assassinado em 1969 pela PIDE, a polícia política da ditadura, que lhe enviara pelo correio uma bomba armadilhada no interior de um livro. Para o seu lugar emergira Samora Moisés Machel, um enfermeiro negro de Lourenço Marques (actual Maputo), que viria a revelar-se um líder de inegável carisma.
As conversações preliminares sobre a independência iniciaram-se a 5 de Junho de 1974 em Lusaca, a capital da Zâmbia. A delegação portuguesa era chefiada por Mário Soares, que se fez acompanhar do diplomata Manuel Sá Machado e do major Otelo Saraiva de Carvalho. O estratego operacional do 25 de Abril representava a Comissão Coordenadora do MFA e o Presidente da República, general Spínola. Otelo recorda que, na véspera da partida, fora chamado a Belém. “O Spínola mandou-me ir a Lusaca para vigiar o Soares, porque, explicou, ‘eu não tenho confiança nesse gajo’. ‘E quero que me tragam de lá um acordo de cessar-fogo’.”
‘O senhor major Otelo acha que eu dê um abraço ao Samora?’
Otelo conhecia bem Moçambique. Nascido em Lourenço Marques em 1936, ali fizera quase toda a escola primária. No Liceu Salazar fora contemporâneo de alguns dos futuros dirigentes da Frelimo, como Joaquim Chissano e Pascoal Mucumbi. “Eu era mais velho e tratava-os por ‘mofana’, que significa miúdo ou catraio na língua ronga, que se fala no Sul de Moçambique.” Em Lusaca, a delegação da Frelimo era composta por nove elementos, muitos dos quais conhecidos do major. “O único branco era o Jacinto Veloso, meu querido amigo e companheiro de turma, que em 1963, quando era piloto da Força Aérea Portuguesa, pegou num aparelho T-6 em Cabo Delgado e voou até à Tanzânia, para se juntar à Frelimo.”
O protocolo da reunião, muito rígido, fora fixado pelo anfitrião, o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda. “Eu estava à direita do Mário Soares, que se virou para mim e perguntou: ‘O senhor major acha que eu dê um abraço ao Samora?’ A que eu respondi: ‘Se o senhor doutor não der, dou eu…’ Foi então que o Soares avançou para o Samora, enquanto eu contornei a mesa para me dirigir ao Jacinto Veloso, que não via há 12 anos e a quem dei um abraço fortíssimo.” O ‘abraço de Lusaca’, como ficou conhecido esse encontro entre Soares e Samora, descongelou completamente o ambiente. Quanto às negociações, Otelo encarregou-se de as subverter. “O Soares bateu-se vigorosamente pelo cessar-fogo, em cumprimento das instruções que recebera do Spínola, perante a total desconfiança da Frelimo, que queria discutir as condições de acesso à independência. Eu desbronquei. Pedi a palavra para acentuar que o espírito do programa do MFA era o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a independência. Acrescentei até que se estivesse sentado no lado da Frelimo diria exactamente o mesmo que eles – o que até levou o Samora a comentar: ‘Ó Otelo, vem mas é aqui para o pé da gente!’” Soares pediu uma interrupção da reunião e admoestou Otelo, lembrando que não eram essas as instruções que recebera. Invocando a sua condição de representante do MFA, Otelo insistiu, dando razão à Frelimo na reclamação do direito à independência.
ESTRATEGO DO 25 DE ABRIL Coronel Otelo Saraiva de Carvalho, junto à última bandeira portuguesa arriada em Moçambique, onde nasceu e estudou FOTO TIAGO MIRANDA
Em posteriores negociações os protagonistas portugueses foram o major Melo Antunes, ministro sem pasta e principal ideólogo do MFA, e Almeida Santos, ministro da Administração Interterritorial, pasta criada exclusivamente para coordenar o processo de descolonização. Licenciado em Direito por Coimbra, António de Almeida Santos fixara-se em Lourenço Marques em 1953, onde cedo se tornou no mais importante advogado daquela província ultramarina. Almeida Santos e Samora eram velhos conhecidos e tratavam-se por tu. “Eu até tinha sido advogado do Samora, quando ele era enfermeiro no hospital. Tinha o direito a ser promovido, mas o governo recusava, de modo que me procurou para o ajudar”, conta Almeida Santos; “fiz-lhe um requerimento e consegui que fosse promovido.” Em Lusaca, o líder da Frelimo fez questão de o recordar publicamente: “‘Aqui o Almeida foi meu advogado e não me levou dinheiro nenhum’, disse em voz alta. O que era verdade: nunca levei dinheiro a nenhum cliente africano.”
Em dois meses, Portugal e a Frelimo chegaram a acordo. “Estive envolvido em todas as negociações, mas o caso de Moçambique foi um passeio entre amigos”, nota o advogado. O acordo foi assinado em Lusaca a 7 de Setembro. Nesse mesmo dia, insurgindo-se contra a independência, um grupo de brancos ocupou o aeroporto de Lourenço Marques e o Rádio Clube de Moçambique. A sublevação deu origem ao que Almeida Santos classifica, no seu livro “Quase Memórias”, de “um autêntico vendaval de violência indiscriminada”, com um número indeterminado de mortos, que alguns testemunhos chegaram a estimar em vários milhares. Em representação do Estado português, o alto-comissário, almirante Vítor Crespo, chegou ao Índico a 12 de Setembro. Um governo de transição, com representantes de Portugal e da Frelimo, tomou posse a 21, tendo como primeiro-ministro Joaquim Chissano. Em Outubro verificaram-se novos incidentes na capital, com uma forte componente racial. No seu livro “Memórias em voo rasante”, Jacinto Veloso, o então homem forte da segurança da Frelimo, considera que foram os acontecimentos “mais graves da fase de transição”.
O retorno dos brancos à metrópole
O êxodo da população branca tornou-se imparável. Para isso também contribuíram os discursos de Samora, que percorreu o território de alto a baixo, começando pelo rio Rovuma, que faz fronteira a Norte com a Tanzânia, até ao Maputo, no extremo Sul. Jorge Sampaio, o secretário de Estado da Cooperação do IV Governo Provisório, esteve em Moçambique mais que uma vez, para ultimar alguns dossiês pendentes. Na sua biografia evocou as arengas de Samora, transmitidas em directo pela rádio e amplificados por altifalantes: “Desde as seis da manhã que se ouviam os discursos do Samora! Aquilo era impossível de aturar. Se queriam que os portugueses lá ficassem, foi um dos erros mais catastróficos que podiam ter feito. Havia muita gente que podia ter continuado, mas aquilo era uma coisa antiportuguesa até mais não… Assim, não ficou ninguém.” O êxodo, verifica Jacinto Veloso, foi um “facto que a Frelimo, naquela dimensão, não havia previsto”.
A independência ocorreu na data marcada: 25 de Junho de 1975, a assinalar a data da fundação da Frelimo. Na cerimónia – a primeira do género na História de Portugal - o Estado esteve presente a altíssimo nível: o alto-comissário, Vítor Crespo; o primeiro-ministro Vasco Gonçalves (que também representava o Presidente Costa Gomes); os máximos representantes dos partidos que integravam o IV Governo Provisório (Soares, Álvaro Cunhal do PCP, Magalhães Mota do PPD e Pereira de Moura do MDP/CDE); Melo Antunes e outros conselheiros da Revolução, como Almada Contreiras, Pinto Soares e Otelo. Almeida Santos teve um impedimento de monta: estava em Macau, para uma cimeira que se supunha decisiva para a descolonização de Timor-Leste. “Poupei-me ao desgosto de testemunhar o começo das dificuldades e amarguras que viriam depois”, observa nas suas memórias.
NASCER DE UM NOVO PAÍS Hastear, pela primeira vez, da bandeira da República Popular de Moçambique, durante a cerimónia da Independência a 25 de junho de 1975, no Estádio da Machava, em Lourenço Marques (atual Maputo) FOTO EDUARDO CHALBERT “IMAGEM CEDIDA PELO ANTT”
O palco foi o estádio de futebol da Machava, em Lourenço Marques, sob uma chuva torrencial que encharcou uma multidão em transe com a conquista da independência. Ao som do hino nacional, a bandeira portuguesa foi arriada por um marinheiro, que, com a ajuda de um camarada da Força Aérea, a dobrou cuidadosamente. Subiu a seguir a bandeira da Frelimo, que era simultaneamente a bandeira do novo país. Coube a Samora Machel, investido na sua nova condição, a de primeiro Presidente da República, pronunciar um discurso para todos os efeitos histórico: “Moçambicanas! Moçambicanos! Operários! Camponeses! Combatentes! Povo Moçambicano. Em vosso nome, às zero horas de hoje, 25 de Junho de 1975, o Comité Central da Frelimo proclama solenemente a independência total e completa de Moçambique e a sua constituição em República Popular de Moçambique…”
DISCURSO Durante a proclamação da Independência de Moçambique, da esquerda para a direita: Vasco Gonçalves, na altura primeiro-ministro de Portugal, Marcelino dos Santos, ministro da Planificação e Desenvolvimento do novo país, e Samora Machel, primeiro Presidente da República Popular de Moçambique FOTO EDUARDO CHALBERT “IMAGEM CEDIDA PELO ANTT”
No mesmo dia, a delegação portuguesa, incluindo Vítor Crespo, abandonou a grande colónia do Índico, a cuja costa aportara pela primeira vez Vasco da Gama, em 1498, na sua história viagem marítima até à Índia.
A bandeira que desceu do mastro do campo da Machava foi entregue ao Museu Militar de Lisboa. Está exposta na Sala das Bandeiras, a primeira que o visitante encontra se entrar no museu pelo magnífico pátio dos canhões. Exposta igualmente a salva de prata em que foi transportada, após ter sido retirada da adriça.