HERBERTO HELDER

“Com a licença de todos, o criador aqui sou eu”

O POETA “A minha idade escapa-se de um lado para o outro, sob os dedos, como um nervo fulgurante. Vou morrer. O ouro está perto” FOTO EXPRESSO

O POETA “A minha idade escapa-se de um lado para o outro, sob os dedos, como um nervo fulgurante. Vou morrer. O ouro está perto” FOTO EXPRESSO

Um dos maiores nomes da poesia portuguesa de sempre, Herberto Helder, morreu na segunda-feira, aos 84 anos de idade. Homem de princípios rígidos, obsessões vibrantes, medos diabólicos, foi mestre da palavra e da sintaxe, que nunca deixou de destruir e reconstruir

TEXTO ALEXANDRA CARITA

Os poetas arrogam-se o direito de recomeçar o mundo”, escrevia Herberto Helder em 1968. Foi isso que fez. Mudou o mundo dele e o nosso com as palavras que sempre quis destruir e reconstruir, rasgar e colar. Esse mundo do medo e do sagrado, da obsessão, da morte, da sintaxe e da criação obscura e torturante. Foi assim que esse ícone maior da poesia portuguesa elevou à excelência a palavra visceral e a que mais temia; a elevou naquela busca incessante por uma respiração folgada, uma espécie de libertação, que só alcançava através daquele ardiloso trabalho de artesão, qual “ofício” absoluto e divino, esse da criação.

Poesia avassaladora. Doentia também. Imagem de um espírito em mutação constante, infinitamente à procura da perfeição a que nunca diz chegar. Nesse universo de luta intelectual e física, também, a dor de Herberto Helder transforma-se em fantasma, em fantasmas mesmo. Os seu temas mais recorrentes entram nessa fantasia inebriada e inebriante. E lá volta à morte, ao crime, ao suicídio, ao apocalipse e ao génesis, ao corpo, ao ritual e à alquimia e à capacidade da metamorfose constante. E no meio de tudo: a palavra. Monstruosa como o amor que perpassa toda a sua obra. Paixão e sangue aproximam-se da salvação no messianismo herbertiano, onde a destruição da obra é a única saída, transformada , porém, numa exaltação cada vez mais extrema e violenta.

No entanto, Herberto Helder Luís Bernardes Oliveira (Funchal, 23 de novembro de 1930) chega tímido a Lisboa aos 16 anos. Vem acabar os estudos liceais mas fica para, em 1948, se inscrever na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e para rapidamente mudar para o curso de Filologia Românica, que frequenta durante três anos, quase como uma obrigação. O seu desprezo pelo academismo é conhecido, como o é a sua atração pelo destino do vagabundo a que junta para sempre, já nos anos 50, a poesia.

Começa então a publicar poemas avulso e parte de Coimbra para Lisboa. Funcionário durante um curto período na Caixa Geral de Depósitos, passa a angariador de publicidade e mais tarde a outros biscates. É em 1958, porém, que o rapaz tímido que ouve e interpreta mais do que se exprime, lança uma verdadeira pedra no charco da intelectualidade lisboeta ao editar o seu primeiro livro, “O Amor em Visita”. Mas é longe dessa gente da capital que escreve o esqueleto de “A Colher na Boca” e “Os Passos em Volta”, entre 1958 e 1960, quando visita países como a Dinamarca, a França, a Holanda ou a Bélgica.

No regresso a Lisboa, as tertúlias mantêm-se. Inalteradas. Boémia e vagabundagem sim, ganhar dinheiro com o trabalho poético não. Assim se pagava a liberdade. Permitidos eram apenas os mais circunstanciais dos empregos. Herberto é encarregado de uma das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, criado numa cervejaria, cortador de legumes, empacotador de aparas de papéis e guia de marinheiros no mundo da prostituição europeia. A surpresa chega quando António Alçada Baptista, secretário de Estado da Cultura, lhe oferece uma pensão vitalícia. Um dos poucos reconhecimentos pela sua poesia que aceitou, por ser pequenina. Já o montante valioso do Prémio Pessoa teria que recusar, coerente consigo próprio. Fê-lo em 1994.

Entre viagens e livros, em 1970, parte para Angola, onde fica dois anos. Nessa altura, adota a profissão de jornalista. Mais pragmático então e menos obsessivo, o poeta nem assim consegue libertar-se da prisão que o liberta. Essa Eu herbertiano depressivo que nunca há de deixar que a psicanálise e terapias várias lhe passem ao lado.

Daí, dessa África colonizadora traz consigo mitos e mitologias, ritos e outro tempo. Tempo de aprendizagens, de iniciações e de amputações. Aquele mesmo tempo que transportou para algures em Cascais, onde se reclusa. Sempre invadido pelo ego. Forte. Fortíssimo. Maior do que a idade, a sua, e a dos seus eternos poemas.

Esses, cheios de palavras que nunca se cansou de riscar e deitar fora para chamar outras e repetir o mesmo processo, numa amargura febril. A que fez com que “A Poesia Toda” (1990) nunca fosse toda e nunca fosse estanque. A que fez com que “Ou o Poema Contínuo” (2001) lhe seguisse esses passos. A que o levou até “Servidões” (2013) e a “A Morte Sem Mestre” (2014), o seu mais ressentido e ressequido livros de sempre. Um prelúdio à morte, a sua querida morte odiosa, ou um ressabiamento de fim de vida.

“sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra, que não respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de respirar
sobre o pó da terra que respira,
entre o poema sumérico e este poema de curto fôlego”

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