A tempo e a desmodo
Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com
Ainda há esquerda?
ESQUERDA Fugir da realidade, uma especialidade da casa FOTO GETTY IMAGES
Na Europa, a esquerda é cada vez mais o Lince da Malcata. Todos os debates centrais são entre figuras da direita, Merkel vs. Trump à escala transatlântica, Merkel vs. AfD na Alemanha, etc. O nosso futuro vai ser decidido por este confronto entre um centro-direita liberal e conservador e uma extrema-direita nacionalista e reacionária. Isso é evidente em França. Debater neste momento as primárias do Partido Socialista francês é mera discussão académica. Uma sondagem recente mostra que Benoit Hamon vale cerca de 8% na primeira volta das presidenciais, ficando em quinto e último lugar atrás de Fillon (26%), Le Pen (27%), Macron (20%) e Mélenchon (13%). Valls, o rival de Hamon, não faz melhor (9%).
Quando olhamos para estes nomes e para a sua ordenação, ficamos com uma ideia do cataclismo da esquerda. A liderança é disputada entre um conservador liberal (Fillon), uma nacionalista (Le Pen) e por um liberal de esquerda (Macron) que até recusa a palavra “esquerda”; diz que é um centrista independente e, de facto, Macron é a negação da esquerda francesa - à semelhança de Valls. Resta apenas o radicalismo esquerdista de Mélenchon que está mais perto do nacionalismo de Le Pen do que da abertura cosmopolita de Fillon, Valls ou Macron. Entre Le Pen ou Fillon, não tenho dúvidas que o povo de Mélenchon votará Le Pen. Tal como as pessoas que agora escolhem Hamon em detrimento de Valls nas primárias do PS. Esta vitória de Hamon diz-nos que o centro-esquerda francês está de facto a sair do centro político, refugiando-se cada vez mais num extremo onde as diferenças entre nacionalistas e esquerdistas é reduzida ou nula.
Esse refúgio no extremo também representa um refúgio contra a realidade. Por exemplo, Hamon propõe lançar impostos sobre robôs e reduzir ainda mais o horário de trabalho para os, digamos, humanóides: de 35 para 32 horas semanais. A obsessão da esquerda francesa com a redução do horário de trabalho num contexto em que a Europa é massacrada pela concorrência asiática é algo que nos remete de novo para o pós-realidade. Hamon pensa e fala como se a França fosse uma ilha flutuante e imune à pressão da realidade internacional. É como se as fronteiras da França bloqueassem de facto os ventos da globalização. É de novo a tentação nacionalista. Para continuar a divagação, Hamon propõe um rendimento mínimo universal (UBI) de 750 euros. Num país que vive soterrado pelo peso da despesa pública, não se percebe onde é que Hamon pode ir buscar 750 euros para todos os adultos franceses em cima daquilo que já se gasta. O refúgio no extremo, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, é uma fuga da realidade.