Antes pelo contrário
Daniel Oliveiradanieloliveira.lx@gmail.com
Aylan, Omran e o toca e foge das opiniões públicas
Primeiro foi Aylan Kurdi, a criança curda de três anos encontrada morta numa praia turca, em setembro do ano passado. Depois foi Omran Daqneesh, o menino de cinco anos que, depois de retirado de um edifício bombardeado de Aleppo, ficou sozinho numa ambulância, com o olhar perdido. Duas imagens que representam a banalidade da guerra. E é por representarem a banalidade que impressionam. O vídeo impressiona ainda mais, quando vemos os gestos naturais de uma criança que limpa as mãos do seu sangue, desajeitadamente, na cadeira onde está sentada. Toca-nos a banalidade por nos aproximarem destas pessoas. Não lhes dão apenas rosto, dão-lhes o rosto insuportável da inocência e da proximidade.
As pessoas mais politizadas não costumam precisar desta empatia emocional para defender o que acham estar certo. A frieza da razão é muitas vezes retratada como sinal de insensibilidade. Mas pode ser o oposto. A moral à frente da emoção é a garantia de que não precisamos de nos identificar com a vítima para perceber que é uma vítima. Não precisamos de imaginar que podíamos ser nós, podiam ser os nossos filhos. Mas outros precisam. Para que a compaixão seja maior do que o medo de socorrer quem tem de ser socorrido, acolher quem tem de ser acolhido. Como os europeus foram socorridos e acolhidos quando a guerra lhes arrasou as nações e as vidas.
Não sou contra este tipo de “manipulação” através das imagens. Ela pode ser benigna. Mas, nos tempos de toque e foge em que vivemos, onde nada dura mais do que uma hora, um dia, uma semana no máximo, é perversa a comoção de consumo rápido. Põe-se no Facebook e já está.
Fica a faltar tudo o resto. Antes de tudo, o reconhecimento da complexidade do problema. A guerra do Iraque e as primaveras árabes deixaram um vazio de poder (ou um poder ditatorial enfraquecido) no meio do caos. Há responsabilidades ocidentais – a invasão do Iraque foi das maiores irresponsabilidades da história recente –, das lideranças árabes e outras difíceis de determinar. A verdade é que o caos atraiu todos os intervenientes possíveis. No Iraque e na Síria, o primeiro pelo seus recursos o segundo pela sua posição estratégica (entre o Iraque, Israel, o Líbano, a Turquia e o Mediterrâneo), confluíram vários conflitos e interesses. Os fundamentalistas que têm feito de cada guerra no mundo muçulmano local de peregrinação jiadista; as forças bárbaras do regime de Assad e os seus aliados russos; os xiitas iraquianos com os seus aliados iranianos e libaneses; os sunitas iraquianos cansados de serem maltratados; as forças apresentadas como oposição democrática da Síria que chegaram a andar de braço dado com o Daesh; os curdos com a sua agenda independentista; os turcos, com mais medo dos curdos do que dos islamistas; os americanos sem autoridade moral para fazerem seja o que for na região; os europeus com as suas várias agendas contraditórias; os israelitas, que preferem ver a pradaria arder nos países vizinhos do que os ter concentrados no inimigo comum; o Líbano e a Jordânia a sentirem os efeitos esmagadores da chegada de milhões de refugiados; os países árabes mais ricos, sempre indiferentes ao sofrimento dos seus vizinhos.
Sobram milhões de refugiados de uma guerra impossível de compreender para a generalidade dos europeus. E sobraria, se houvesse, uma consciência coletiva que daria aos europeus o sentido de dever histórico de receberem quem foge de guerras, assim como foram recebidos quando fugiram das suas. Se tivéssemos essa consciência poderíamos fazer, com a serenidade do sentimento de dever para cumprir, um debate sobre a forma de organizar a receção de refugiados partilhada pelos vários países europeus. Como impedir que os traficantes de sofrimento lucrassem com isto, instalando pontos de receção mais próximos do conflito e criando pontes aéreas. Como não deixar para os povos europeus do sul todo o fardo e para os alemães o dever de serem o ponto final de destino. Como fazer a triagem que consiga reduzir a possibilidade de terroristas entrarem na Europa.
Como falta a informação e a consciência, sobra a emoção que os símbolos alimentam. Hoje pode ser uma criança sentada numa ambulância com a cara manchada pelo pó e pelo sangue, amanhã pode ser um grupo de muçulmanos a apalpar uma alemã em Colónia. Hoje pode ser o cadáver de um menino numa praia turca, amanhã pode ser um louco a conduzir um camião numa marginal de Nice. Se só resta a emoção, só resta este jogo de manipulações. E tudo dura uns minutos, umas horas, uns dias, numa coerente inconsequência coletiva.
Estou cansado de símbolos. Houve um tempo em que eles cumpriam a função de mobilizar as pessoas para a ação. Fosse para a solidariedade prática, fosse para a intervenção política. As redes sociais, que poderiam ser instrumentos poderosos de informação e organização, são, para a maioria, uma simulação da intervenção cívica. E como acontece sempre que a intervenção é demasiado fácil, demasiado inorgânica, demasiado desorganizada, demasiado momentânea, ela vive dos humores e é inconsequente. Amanhã será outra coisa. Torna tudo banal. Hoje as vítimas são Aylan e Omran. Amanhã, perante uma qualquer imagem favorável ao discurso xenófobo, eles e os seus pais serão o problema. Para as mesmas pessoas. Com a mesma ligeireza. Não temos opiniões públicas, temos humores coletivos.