Daniel Oliveiradanieloliveira.lx@gmail.com

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Mãe que arrepia

Deus me perdoe o que vou dizer, o meu filho morreu, o que fez vai ter de pagar e sozinho, pois não posso acompanhá-lo nesta etapa. (...) Devia ser entregue para fazerem justiça pelas próprias mãos, é um desgosto muito grande, um pesadelo. A minha vida acabou, preferia mil vezes que ele estivesse no lugar do Filipe. Talvez um dia ele me perdoe por não o ter acompanhado, mas perante a situação não dá mesmo. Os pais não têm de pagar pelos erros dos filhos e vice-versa. (...) Peço perdão, não posso fazer mais nada nesta hora.” Quem escreveu estas linhas, no Facebook, esse confessionário global onde a intimidade é quotidianamente massacrada, foi a mãe de Daniel, o rapaz de 17 anos que terá cometido o homicídio de Salvaterra de Magos.

Ao ouvir estas frases na televisão senti mais do que um incómodo. Era como se alguém estivesse a raspar as unhas numa ardósia. Não, não vou juntar-me aos justiceiros. Sei que Daniel saltou de instituição em instituição, desde os 4 anos. Não sei mais nada. Não sei da culpa ou inocência de ninguém pela vida que teve. Nem se soubesse mais do que dizem as notícias, que resumem em duas ou três frases toda a tragédia de uma existência, estaria capacitado para saber quem tem culpa por o Daniel ter posto fim a uma vida de uma quase criança de 14 anos. E, no fundo, ter posto também fim à sua vida. Nestas coisas, confesso uma limitação: o que vivi não chega para perceber todas as partes negras da vida.

Há, no entanto, uma coisa que consigo dizer. Porque ela não depende de um conhecimento maior do que o saber primitivo. Uma mãe e, na nossa cultura, um pai, podem não perdoar um filho. Podem renegar toda a sua maldade e bestialidade. Mas, em princípio, não podem renegar o que são: pai e mãe. Desejam a sua própria morte antes de desejarem a morte de um filho. Amaldiçoam-se antes de amaldiçoarem um filho. Culpam-se sempre, mesmo quando a culpa não é sua. Não abandonam a cria, mesmo que a cria seja um monstro. A não ser, claro, que queiram proteger outra cria sua. E não há aqui, como diz a mãe de Daniel, qualquer “vice-versa”. O amor entre pais e filhos não é paritário. Porque fomos nós, pais, que decidimos ser pais. Não foram os nossos filhos que decidiram ser filhos.

Não julgo – como poderia julgar – as responsabilidades da mãe do Daniel pelo crime que ele cometeu. Apenas não posso, sem precisar de mais nada para além do meu instinto paternal, de deixar de me arrepiar com a forma como esta mãe oferece à comunidade, na busca de perdão para si, o seu filho para sacrifício. Só uma relação extraordinariamente deformada pode levar uma mãe a desejar a morte de um filho e a desistir dele no pior dos momentos. Para julgar o Daniel estamos cá todos. Os pais amam irremediavelmente as suas belas ou horrendas criaturas. E quando não amam estão amputados de forma brutal na sua existência. Podem procurar no filho a responsabilidade do seu desamor. Mas é provável que estejam à procura no lugar errado.

Mas ainda mais arrepiante do que a frase da mãe, que a perturbação, o sofrimento ou o medo podem explicar, é ler os comentários de pessoas que não estão emocionalmente envolvidas no caso e vê-las a aplaudir estas frases arrepiantes, como se precisassem que a mãe do homicida se juntasse ao coletivo de juízes. Como se a singularidade do amor maternal e paternal não fosse a de até um homicida o merecer. E ao ver que nem isto é óbvio, percebo mais uma vez que o que vivi não chega para compreender todas as partes negras da vida. Nem a de que haja tanta gente que não sinta que o amor pelos seus filhos é incondicional e irrevogável. Acima do bem e do mal.