INVESTIGAÇÃO
Padre Anselmo Borges
O celibato obrigatório pode levar a uma “sexualidade distorcida” nos padres

FOTO FILIPPO MONTEFORTE/AFP
É um dos assuntos mais recorrentes da Igreja Católica e já motivou muitos pedidos de perdão ao longo do tempo. O Papa Francisco protagonizou o mais recente, mas desta vez foi um pedido diferente. Pediu desculpa às vítimas e a todos os que se sentiram ofendidos pela sua defesa de um bispo chileno acusado de encobrir crimes de abuso sexual de menores. Aqui falamos sobre isso, mas falamos sobretudo sobre esse debate antigo que opõe, às vezes, e associa, outra vezes, pedofilia e celibato, tendo como pano de fundo uma investigação recente de uma comissão australiana sobre abusos de menores cometidos sobretudo em instituições católicas espalhadas pelo país
Texto Helena Bento
O tema é antigo mas tão não antigo ao ponto de estar esquecido. Acontecimentos recentes vieram aliás lançar a discussão sobre ele. Foi o Papa Francisco que pediu perdão às vítimas de abusos sexuais no Chile e a todos os que se sentiram ofendidos pela sua defesa de um bispo chileno acusado de encobrir crimes de pedofilia.
E foi, bem antes disso, a investigação da Comissão Real da Austrália a casos de abuso sexual de menores que implicou sobretudo as instituições católicas e recomendou o fim do celibato obrigatório para evitar crimes de pedofilia na Igreja Católica. Isto porque a maioria das oito mil testemunhas ouvidas pela comissão durante os cinco anos em que decorreu a investigação disse ter sido vítima de abusos em instituições religiosas, sobretudo em instituições sob a tutela da Igreja Católica - 61,4% dos casos -, que defende o celibato obrigatório.
Apesar dos escândalos revelados nas últimas décadas sobre o abuso de menores por parte de membros do clero, nomeadamente nos EUA e na Irlanda, a Igreja Católica continua a negar que haja uma ligação, direta ou indireta, ou mesmo ténue, entre celibato e pedofilia, apresentando como principal argumento o facto de a maioria dos casos de abuso sexual de menores ocorrer em ambiente familiar. Aqui não discutimos se há ou não - seria à partida uma tarefa inútil, dada a divergência de opiniões - antes retomamos um debate que pode até não estar esquecido, mas há de estar num ponto muito próximo disso. E os acontecimentos recentes que serviram aqui como nota introdutória mostram que é importante falar sobre isto.
Padre da Sociedade Missionário Portuguesa, Anselmo Borges concorda que não pode ser estabelecida uma relação de causalidade entre celibato e pedofilia nem atribuir à Igreja Católica o “monopólio da pedofilia”. Ainda assim, acredita que o celibato obrigatório pode levar àquilo a que chama “sexualidade distorcida” ou “imatura”, uma sexualidade que não é assumida na sua plenitude dado o ambiente “fechado” em que os futuros padres são educados, nos seminários, em que não é promovido o contacto com o sexo oposto.
Se o celibato deixasse de ser obrigatório, não haveria tantos casos de abuso sexual de menores - Padre Anselmo Borges
Em entrevista ao Expresso, Anselmo Borges diz ter já abordado o assunto com um psicanalista e psiquiatra na Universidade de Coimbra, onde dá aulas. “Ele explicou-me precisamente isso, que os pedófilos são pessoas imaturas, pessoas que não sabem relacionar-se com pessoas adultas, e por isso exploram crianças”.
Anselmo Borges, Padre da Sociedade Missionário Portuguesa FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Para Anselmo Borges, não há dúvidas de que se os futuros padres fossem educados num contexto mais “aberto” e “normal”, com uma “vivência mais sadia da sexualidade”, e se o celibato deixasse de ser obrigatório, não haveria tantos casos de abuso sexual de menores. E dá o exemplo da Alemanha, onde os estudantes de Teologia, “antes de serem ordenados padres, têm uma vida fora dos seminários”. “São obrigados a sair da diocese e ir viver por sua conta para outros lugares, estudando aí Teologia, provando a si próprios que são capazes e tendo aí os contactos que acharem bem”. A comissão australiana concluiu que, embora o celibato “não seja uma causa direta do abuso sexual de crianças”, neste caso “contribuiu para a ocorrência de outros abusos sexuais de menores, especialmente associado a outros fatores de risco, como o acesso privilegiado a crianças”.
Pedofilia pode ser evitada com “maturidade e uma vida afetiva feliz e preenchida” - Fernando Félix
Também Fernando Félix, um dos responsáveis pelo Movimento Fraternitas, uma associação que reúne e apoia padres que foram dispensados do exercício do sacerdócio, para se casar ou por outras razões, concorda que uma educação num contexto fechado, em que não há espaço para amadurecer a sexualidade, poderá levar futuros padres a cometer esses abusos. Mais ainda, diz, quando “essa educação é castradora, no sentido em que dá uma imagem negativa da mulher, do casamento, sobrevaloriza o sacerdote em comparação com os leigos e o celibato em comparação com o matrimónio”.
Nesta formação, acrescenta Fernando Félix, o celibato é tido como “um ato supremo de ascese, um ato heroico, um gesto sublime de amor, e o matrimónio é tido como o ‘convívio com o pecado’”. “Não é por acaso que se cita tantas vezes o salmo 50: ‘A minha mãe concebeu-me em pecado’ - na verdade significa ‘como pecador’ - para justificar a imagem negativa da relação sexual”, diz o antigo padre, que não acredita, no entanto, que o fim do celibato obrigatório possa acabar com situações de assédio e crimes de natureza sexual. “No caso dos padres, são a sua maturidade e a sua vida afetiva feliz e preenchida que podem pôr fim a isso”, considera.
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Celibato voluntário “não é solução” para o fim da pedofilia
A contrariar as palavras do padre Anselmo Borges sobre a influência da educação e do ambiente em que os futuros padre são educados aparece Ricardo Barroso, psicólogo e docente da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. “Não estamos a falar de instituições totalmente fechadas, sem qualquer contacto com a sociedade”, justifica o especialista, que não considera que a solução apresentada pela Comissão Real da Austrália para pôr fim aos casos de pedofilia no seio da Igreja Católica seja uma “boa recomendação”. E não considera porque isso implica, “de algum modo, assumir que o comportamento sexual abusivo ocorre apenas involuntariamente, o que não é verdade”. “Este tipo de comportamentos acontecem porque o agressor, em determinado momento, optou por abusar, mesmo tendo a capacidade de controlar o seu comportamento. Abusou do seu poder sobre a vítima e da sua influência para a manipular, usou da mentira para descredibilizar a vítima e evitar assumir responsabilidades”, diz.
Mais eficaz do que o celibato do ponto de vista da prevenção de casos de pedofilia seria “dar mais formação às pessoas nas instituições” - Ricardo Barroso
Inserido num grupo de trabalho na Alemanha que está a desenvolver um projeto relacionado com esta problemática, Ricardo Barroso diz ter conhecimento de muitas pessoas que, “mesmo tendo interesses pedófilos, nunca cometeram crimes e até procuram ajuda”. Mais eficaz do que o celibato do ponto de vista da prevenção de casos de pedofilia seria “dar mais formação às pessoas nas instituições, informá-las sobre as possibilidades de denúncia e não descredibilizar as vítimas”, defende o especialista.
A pedofilia “está muito para além da história do celibato e não está diretamente relacionado com o voto de castidade” - João Seabra Diniz
Também João Seabra Diniz, psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, manifesta muitas reservas em relação à recomendação da comissão australiana. Tendo acompanhado de perto, durante a sua vida profissional, muitos casos destes, o especialista diz que a pedofilia “é algo que está muito para além da história do celibato e não está diretamente relacionado com o voto de castidade”. A pedofilia, acrescenta, é “um problema da sexualidade humana”. “A evolução da sexualidade humana até à maturidade é complexa e há pessoas que não fazem esse percurso. E essas pessoas são muitas vezes amigos, conhecidos, tios ou outros familiares, e não exclusivamente pessoas ligadas à Igreja.”
João Seabra Diniz diz conhecer vários casos de pedofilia em famílias que “estavam aparentemente a funcionar de forma normal”. Ou seja, este comportamento sexual abusivo nem sequer está associado a pessoas que vivam sozinhas, como os celibatários, ou que se encontrem em “situações de maior fragilidade emocional”. Como se explica, então, que a maioria dos casos ouvidos pela comissão australiana tenha ocorrido em instituições religiosas e, sobretudo, em instituições católicas?
Para o especialista, isso significa apenas que “havia pessoas que foram selecionadas e que não tinham condições para isso”, pessoas “desequilibradas” e “pouco maduras”, que podem ter procurado “proteção e refúgio” naquelas instituições. Sugere, por isso, que a Igreja Católica “reflita a sério” sobre o assunto para “tentar perceber o que pode fazer” para evitar casos semelhantes no futuro, nomeadamente ao nível da seleção de pessoas.
Ao contrário do psicólogo Ricardo Barroso, que defende ser possível perceber se há “interesses pedófilos” através de exames feitos na admissão ao sacerdócio, João Seabra Diniz diz ter “dificuldades em acreditar” que seja possível despistar logo de início esses casos. Sem especificar o tipo de exame, o padre Anselmo Borges diz haver já indicações por parte do Vaticano para a realização de testes psicológicos a seminaristas que queiram ser padres.
Celibato - sim ou não
A introdução do celibato para todo o clero é uma questão recente na Igreja. Teresa Toldy, teóloga e docente na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, enquadra o assunto. A especialista explica que durante séculos o celibato foi uma opção monástica - só optava por isso quem pertencia a ordens religiosas, o que implicava e implica viver em comunidade - e que foi depois imposto ao clero para “controlar o comportamento inaceitável de membros do clero que viviam uma vida devassa (incluindo Papas), bem como evitar que a propriedade da Igreja fosse cair nas mãos dos filhos dos padres, deixando assim de pertencer à Igreja”.
A posição do padre Anselmo Borges sobre o assunto é conhecida e ele resume-a invocando Jesus, “que entregou o celibato à liberdade, não podendo portanto a Igreja impô-lo como lei”. O padre e docente diz estar convencido de que a maioria do clero é a favor do fim do celibato obrigatório, até porque isso poderia ser positivo para padres que vivem sozinhos, em comunidades muito isoladas. “Na Alemanha, houve até um pedido para terminar com a lei do celibato precisamente por causa desses padres que vivem em solidão”.
“Só é possível manter o celibato se houver uma grande causa, uma causa absorvente” - Anselmo Borges
O Papa Francisco admitiu recentemente estar aberto à possibilidade de permitir que homens casados católicos possam tornar-se padres, para combater a escassez de clérigos com que a Igreja se debate. Anselmo Borges diz ter informações de que isso será levado à prática em breve, ainda durante o tempo do atual Papa, embora não acredite que mudar as regras do celibato leve mais homens ao sacerdócio. “Ser padre é uma questão de fé e o que tem faltado fundamentalmente é fé e um compromisso com Cristo, estar empenhado em difundir a mensagem de Jesus por palavras e obras”.
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Questionado sobre se é difícil para um padre manter o celibato, Anselmo Borges não dá uma resposta contundente. Diz que “só é possível manter o celibato se houver uma grande causa, uma causa absorvente”. “Só quem vive verdadeiramente empenhado na difusão do Evangelho e vive essa missão de uma forma que o preenche consegue, de facto, viver em castidade. Nesses casos o que acontece, e que Freud descreveu, é uma sublimação da sexualidade, em que a energia sexual é transferida para esse ideal e para o trabalho por essa causa maior. De outra maneira, não vejo como seja possível, até porque o instinto sexual, como sabe, é muito forte”.
Há uma “intersecção mínima entre pedofilia e celibato”
Especialista em Teologia Moral, o Padre Jorge Teixeira da Cunha concede que haja uma ligação entre celibato e pedofilia, mas uma ligação “mínima” e “absolutamente não direta”. Assim, considera a recomendação da Comissão Real Australiana sobre o fim do celibato obrigatório como forma de prevenir casos de abuso sexual de menores uma “exorbitância”. “A questão do celibato é um problema interno da Igreja que não tem que ver com o problema da criminalidade. Os abusadores são, na maioria das vezes, outras pessoas, casadas e divorciadas”.
Confrontado com os números divulgados no relatório da comissão australiana, que mostram que a maioria dos abusos foram cometidos em instituições geridas por organizações religiosas (58,1% dos casos), sobretudo em instituições católicas, conforme já aqui referimos, Jorge Teixeira da Cunha responde: “Lamento imenso”. “Dou o braço a torcer. Isso é uma coisa escandalosa e absolutamente condenável. Todos nós lamentamos isso. Sinto imensa vergonha e um desconforto tremendo”.
Embora faça questão de salvaguardar que o abuso de crianças “sempre foi considerado um pecado”, tendo a Inquisição inclusive “perseguido aqueles que cometeram esse crime”, o teólogo admite que a Igreja “acordou tarde”. Algo de que já se absolveu nos dias de hoje. “Nunca, como agora, fomos tão rigorosos com isso. Nunca procedemos com tanta intolerância. Tolerância zero, como tem dito o Papa”.
Jorge Cunha reconhece, no entanto, que alguma “imaturidade afetiva e sexual” pode estar por detrás dos abusos sexuais cometidos por clérigos e defende até que a Igreja “tem de educar melhor os seus futuros padres”. “A Igreja tem de abrir a educação dos seus futuros líderes à perícia das Ciências Humanas, que muito podem contribuir para melhorar a qualidade dos clérigos. No passado, achava-se que isso não era preciso, mas agora sabe-se que é preciso”.
Teresa Toldy concorda. Na opinião da teóloga, o tema da sexualidade deveria ser abordado durante a formação dos padres. “Não falar sobre isso ou falar sem se saber do que se está a falar, incutindo nesse discurso quer direta, quer indiretamente, a ideia de que a sexualidade é algo negativo, que deve ser controlada, e que as mulheres são seres dos quais se deve fugir, porque são 'perigosas', contribui para uma 'infantilização sexual' dos candidatos a padres”. Isso, associado ao facto de existirem muitas estruturas católicas que lidam diretamente com crianças (colégios, internatos, etc.), pode contribuir para a ocorrência de casos de abuso sexual de menores.
As autoridades da Igreja agem agora imediatamente” na presença de qualquer suspeita - Padre Jorge Cunha
Os vários escândalos conhecidos no passado (como o caso de pedofilia em Boston, nos EUA, tratado no filme “Spotlight”, de 2015) mostraram que os abusos cometidos por padres eram do conhecimento de várias pessoas dentro da Igreja, outros padres e bispos, que sabiam o que estava a acontecer, mas nada fizeram. Fingiram que não sabiam de nada.
Questionado sobre se a pedofilia continua ser tolerada desta forma, Jorge Cunha diz que, tanto quanto é do seu conhecimento, “as autoridades da Igreja agem agora imediatamente” na presença de qualquer suspeita. “Há uma grande sensibilidade para o assunto por parte dos principais responsáveis. No passado houve, de facto, alguma tolerância, mudavam-se as pessoas de sítio, mas não se mudavam os comportamentos. Creio que isso já não acontece hoje”. Ricardo Barroso, psicólogo, concorda e refere que “a forma como a queixa é recebida hoje é muito diferente do que seria há 10 ou 20 anos”.
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Não denunciar, mas convencer a denunciar
Em agosto, a Comissão Real Australiana tinha recomendado que os clérigos católicos devem ser julgados e condenados quando não denunciarem às autoridades crimes de pedofilia de que tenham conhecimento durante a confissão. O relatório divulgado há dias vem reforçar essa ideia, ao exigir que os bispos australianos peçam ao Vaticano para alterar as leis sobre que informações recolhidas no confessionário podem ou não ser avançadas às autoridades.
Nenhum dos padres - ou antigo padre, no caso de Fernando Félix - ouvidos pelo Expresso concorda com esta alteração. “O segredo da confissão é inviolável”, começa por dizer Anselmo Borges. Se um padre, ou outra pessoa, lhe confessasse ter abusado sexualmente de uma criança, não lhe daria “absolvição” se não houvesse um compromisso de se apresentar às autoridades e confessar o crime.
A mesma posição defende-a o padre Jorge Teixeira da Cunha. “Não sou eu que vou denunciar essa pessoa, mas sou eu que vou convencê-la a denunciar-se”, garante. Também Fernando Félix considera que o segredo da confissão “não pode ser revelado”, mas “nada impede que o sacerdote investigue ou fique atento” e que não obrigue o “prevaricador a emendar-se” e a “compensar o mal praticado”. Se isso será o suficiente? O antigo padre não pode garanti-lo, mas faz a comparação com o ambiente familiar. “Os pais não podem impedir que os filhos façam malandrices, mas seria pior se não vigiassem e não estivessem atentos”.