Sociedade
“Não perguntes, não digas se és gay. Esta lógica cheira a mofo”
A “política do armário” que ditava que os políticos homossexuais não revelassem a sua orientação sexual “cheira a mofo”, defendem ativistas dos direitos LGBT ao Expresso. Uma lógica que pode estar a mudar, uma vez que esta terça-feira Graça Fonseca, secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa, revelou que é lésbica
Texto Mariana Lima Cunha Fotos Nuno Botelho
Estávamos a 10 de dezembro de 2010 quando se soube que Miguel Vale de Almeida, deputado independente eleito pelo PS, iria renunciar ao seu mandato, apenas um ano depois de ter sido eleito nas listas socialistas. A razão era clara e era detalhada pelo próprio: a missão cívica que o levara a integrar as listas do PS, entenda-se a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Parlamento, estava cumprida.
Miguel Vale de Almeida, antropólogo e conhecido ativista dos direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais) é um dos raros casos - a par de Alexandre Quintanilha, deputado socialista e cientista - em que um político português assume que é homossexual e fala da sua orientação sexual abertamente. Voltou a fazê-lo esta terça-feira, quando se deu novo passo na política portuguesa, com Graça Fonseca, secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa, a revelar em entrevista ao “Diário de Notícias” que é homossexual. Escreveu o ex-deputado no Facebook: “Muito bem. Uma governante lúcida, inteligente, bem formada, e a marcar a diferença entre privacidade e identidade ao assumir-se, num gesto político, como lésbica”.
Esta manhã, chegou às bancas a entrevista da governante em que, num momento que não surge destacado nem é chamado a título, Graça Fonseca explica que escolheu assumir a sua homossexualidade como “afirmação política”, porque “se as pessoas perceberem que há um seu semelhante, que não odeiam, que é homossexual”, poderão reforçar a “empatia” que sentem pelo outro. E acrescentou, no seu Facebook, sobre a entrevista: “Falámos de tudo, mesmo de tudo. Porque, afinal, tudo faz parte de uma única realidade, a vida. Neste caso, a minha vida. E a vida não é feita de títulos, leiam e perceberão porquê”.
“Esta lógica cheira a mofo”
Não estava no título mas não tardou a obter reações. Uma delas foi a de Paulo Côrte-Real, ex-presidente da direção da ILGA, associação de defesa dos direitos LGBT em Portugal, e atual candidato nas listas do presidente da Junta de Freguesia de Campolide, André Couto - trazer as questões LGBT para a política local vai ser, admite, “um desafio interessante”. Ao Expresso, Côrte-Real destaca a importância da “visibilidade, para contrariar o silêncio a que têm sido remetidas muitas vidas”: “Em Portugal há um défice muito grande de afirmação - não só na política, onde se está muito longe da proporção realista [de população LGBT], num Parlamento com 230 pessoas”.
Mais concretamente, insiste o ativista, é particularmente importante o facto de se estar a falar de uma mulher lésbica. “Pensamos sistematicamente em gays, em homens. Há muito menos exemplos de lésbicas, até porque as mulheres têm, em geral, menos espaço”. Com as palavras de Graça Fonseca, “faz-se História”.
Tal como Miguel Vale de Almeida, também Paulo Côrte-Real enfatiza a distinção entre vida privada e identidade, um conceito que diz estar subjacente “à própria história dos direitos LGBT”: “A orientação sexual faz parte da identidade. É o que eu sou, e não é sobre as relações que eu tenho. Ninguém hesita em falar sobre ser heterossexual”. Sobre ser homossexual, pelo contrário, há a “política do armário”: “Não perguntes, não digas se és gay. Esta lógica cheira a mofo”.
“Não age bem um governante que apenas fala de si”
As reações à revelação de Graça Fonseca foram mistas: o deputado Carlos Abreu Amorim considerou, no Facebook, que “não age bem um governante que apenas fala de si, que usa a entrevista para tentar projetar-se a si mesmo, a sua vida privada e a sua sexualidade”. Ainda no PSD, o militante e ex-vice presidente da JSD Carlos Reis elogiou a governante: “O facto de ela ter hoje decidido dar esta entrevista e fazer o seu coming out (...) só acrescenta uma dimensão de generosidade à imagem positiva que dela eu já tinha”. Em 2014, depois de a JSD, então liderada por Hugo Soares, hoje líder da bancada parlamentar social-democrata, propor um referendo sobre a adoção e coadoção de crianças por casais do mesmo sexo, Carlos Reis escreveu uma dura carta no “Público” dirigida aos líderes da estrutura: “Vocês desceram a um nível inimaginável, ao sujeitarem a plebiscito o exercício de direitos humanos”.
Ainda nas redes sociais, a ILGA apressou-se a congratular a governante. Ao Expresso, o presidente da direção, Nuno Pinto, lembra que “ao contrário de outras características pessoais, como a raça, a orientação não é visível”, e por isso importa acabar com o “silêncio”: “O silêncio sistemático e histórico é um dos pilares que sustentam a homofobia e a transfobia. O armário não é apenas uma consequência da discriminação e do estigma. É o reforço dessas coisas”.
Quem fala do assunto lembra que o país não está atrasado nestas matérias - tanto o casamento entre pessoas do mesmo sexo como a coadoção foram já aprovadas, e em termos de discriminação “Portugal é um exemplo internacional em termos legislativos”. No entanto, o país vive, segundo Nuno Pinto, uma contradição que contrapõe o progresso que já existe em termos formais com a real mentalidade dos portugueses. “Falta a discussão de propostas, como uma lei-quadro antidiscriminação para proibir o acesso a diferentes áreas, e em geral políticas públicas que façam com que deixe haver esta grande discrepância entre o clima social que se sente e uma legislação avançada”.