LIVRARIAS

A livraria que deixara de ser livraria e quer voltar a ser livraria

LELLO A livraria é uma das mais belas do mundo, inspirou a saga Harry Potter e agora passa a cobrar entradas FOTOS RUI DUARTE SILVA

LELLO A livraria é uma das mais belas do mundo, inspirou a saga Harry Potter e agora passa a cobrar entradas FOTOS RUI DUARTE SILVA

A Lello, no Porto, já era uma das mais belas livrarias do mundo e a partir de amanhã poderá ser a única onde se paga para entrar

TEXTO VALDEMAR CRUZ

O belo pode tornar-se medonho. Resume-se assim, numa frase, o sentimento muito partilhado entre leitores, habituais frequentadores da livraria Lello. Aquele espaço de culto transformara-se em algo de infrequentável. Devido à saga Harry Potter. Devido à massa de turismo arrastado pela saga Harry Potter. Devido à sequência de prémios internacionais desencadeados pela beleza, pelo turismo e por Harry Potter.

A partir de amanhã pagar-se-á para entrar na livraria. A medida é polémica, mas não falta quem a encare como inevitável. Como num passe de mágica, espera-se que tudo comece a mudar. Preocupados com a dimensão do fenómeno, com o abastardamento do conceito, com as mais de cinco mil visitas diárias de turistas que, em muitos casos, aparecem porventura interessados em tudo menos nos livros expostos, a braços com as consequências da transformação de uma das livrarias mais icónicas da cidade e do mundo em apenas um curioso e apetecível ponto das banais rotas veraneantes, os proprietários da Lello decidiram ser tempo de romper.

Era algo de que já se falava há algum tempo, mas a partir de amanhã tudo será diferente. O objetivo é voltar a colocar a ideia de livraria como central na evocação da loja. Para isso necessita de criar condições de espaço, de sossego, de tempo, para quem vê os livros, não apenas como adereço.

Um dia de portas abertas

A mudança faz-se a partir de um ato simbólico. Antes do início das restrições no acesso, a abertura total. Amanhã, entre as 10 horas e a meia-noite, será um dia de portas abertas. Toda a gente pode entrar, como e quando quiser. Ao longo do dia acontecerão inúmeras atividades culturais, com teatro, dança, ballet, concertos de guitarra portuguesa.

Abre, também, o "centro de acolhimento Lello", em frente à livraria, na rua das Carmelitas. Funcionará como receção dos visitantes e ali será disponibilizado o cartão de acesso. Custa €3 para visitantes ocasionais e €10 para clientes regulares, aos quais será entregue o título de Amigo Livraria Lello, válido por um ano e extensível a quatro membros da família. Qualquer daqueles valores será devolvido na compra de um livro.

Cada vez mais recheada com todo o tipo de livros em diferentes línguas, a livraria assegura que haverá edições à venda para ambos os montantes, embora os grupos de visitantes ocasionais possam agregar o valor pago por cada um na compra de publicações mais caras, por exemplo de livros sobre o Porto ou sobre arte e arquitetura portuguesa traduzidos.

Instalado na escultura "Shelter", da artista plástica Gabriela Gomes, o centro de acolhimento permitirá ainda aos visitantes deixarem eventual bagagem, de modo a poderem com mais conforto efetuar a visita. Ali será distribuído um guia da Lello, e na entrada, bem como no interior da livraria, existirão guias cujo contributo maior será o de ajudarem os visitantes a conhecer melhor não apenas o espaço físico como, porventura mais importante ainda, o seu conteúdo.

Entradas prioritárias

Os Amigos Lello têm assegurada entrada prioritária, sem necessitarem de voltar a passar pelo espaço de acolhimento de cada vez que pretendam aceder à livraria.

Há aqui, nas palavras de um dos responsáveis da Lello, a vontade de reassumir cada vez mais a livraria “como um ponto de encontro de amigos num espaço que celebra o livro”, algo que nos últimos anos não tem acontecido. Criar condições para ter mais leitores, mais livros, mais espaço e mais tempo é a essência desta opção, cujos resultados não serão imediatamente mensuráveis.

A Lello sempre foi uma belíssima livraria. Porém, a atenção mediática avançou em crescendo nos últimos anos, sobretudo a partir do momento em que se espalhou o rumor - na verdade não será apenas um rumor - de que J.K. Rowling terá recolhido ali inspiração para criar um dos importantes cenários da saga Harry Potter, a livraria “Floreios & Borrões”. J.K. viveu no Porto durante quase uma década, nos anos de 1990. Nesta cidade deu aulas de inglês, casou-se pela primeira vez e teve a sua única filha.

Ainda em janeiro deste ano a revista “Time” elaborava um “top” das 15 livrarias mais bonitas do mundo e colocava, a par da Lello, outros espaços míticos, como o El Ateneo Grand Splendid, de Buenos Aires (Argentina), a Cafebreria El Péndulo, da cidade do México, a Shakespeare & Co, de Paris, ou a Libreria Acqua Alta, de Veneza.

A mais bonita do mundo

Também o jornal inglês “The Guardian” a classificou como a terceira mais bela do mundo, enquanto a CNN, num trabalho divulgado o ano passado, foi mais assertiva e considerou-a mesmo a livraria mais bonita do mundo.

O edifício, com fachada neogótica e afloramentos de Arte Nova, foi inaugurado a 13 de janeiro de 1906. O projeto é do engenheiro Francisco Xavier Esteves e já então a abertura, até pela imponência dos interiores e pela promessa de proporcionar o que de melhor então se publicava, arrastou uma multidão de notáveis. Estavam, entre eles, Guerra Junqueiro, Aurélio da Paz dos Reis ou Afonso Costa.

Ao longo das décadas registaram-se sucessivas alterações, até de propriedade. A gestão é agora assegurada pela Prólogo Livreiros, S. A., da qual faz parte um dos herdeiros da família Lello. Em 1995 houve uma operação de restauro de todo o espaço, com atualização e informatização dos serviços e criação de uma galeria de arte e de um dos segredos mais bem guardados da Lello: o espaço de tertúlia, que agora poderá vir a ter outra dinâmica e ser fruído de outra maneira.

Na origem da Lello, embora ainda noutras instalações, está a Livraria Internacional de Ernesto Chardron, criada em 1869. Antigo empregado da Livraria Moré, Chardron foi um dos primeiros editores de Camilo Castelo Branco.