Obituário

Morreu Júlio Pomar, o artista que fez o pleno

Foto António Pedro Ferreira

Foto António Pedro Ferreira

Há artistas cuja importância está ligada a um momento específico da história da arte. Outros distinguem-se por conseguirem dar sucessivos impulsos à obra ao longo da vida. Júlio Pomar, que faleceu esta terça-feira em Lisboa, aos 92 anos, fez o pleno

Texto Celso Martins

Personagem fundamental da pintura neorrealista portuguesa, que ajudou a definir desde 1945, Pomar construiu, depois, a partir de meados dos anos 50, uma obra marcada pela metamorfose formal e pela abrangência temática. Gente do seu tempo, figuras mitológicas, acontecimentos, histórias e os seus escritores, ideias, corpos. Aparentemente, pintou tudo e de muitas maneiras, com humor e acutilância e assim, como poucos, ajudou a configurar o imaginário visual português da segunda metade do século XX.

Nascido em Lisboa em 1926, frequenta ainda adolescente a Escola António Arroio e a Escola de Belas-Artes de Lisboa que trocará, em 1944, pela do Porto. É num contexto de militância política que participa na aventura do neorrealismo, um movimento empenhado na transformação social e na luta contra a ditadura (que o prende em 1947) cujos modelos estéticos se filiam mais evidentemente no muralismo mexicano de Orozco e Siqueiros ou no regionalismo do americano Thomas Hart Benton do que no realismo socialista soviético. A produção desses anos, em que expôs nas Exposições Gerais de Artes Plásticas (1945-56), inclui algumas das obras mais marcantes como o “Gadanheiro” (1945) quadro-manifesto do neorrealismo ou “O almoço do trolha” (1946-50) e é acompanhada por uma especulação teórica continuada (iniciada no suplemento Arte do jornal A Tarde em 1945) que, em grande medida, definir os contornos do movimento para além do realismo “imitativo”, na recusa da abstração e em favor de uma pintura que fosse uma linguagem rica e expressiva mas socialmente comprometida.

A sua pintura começa a afastar-se do programa neorrealista em meados de 50, libertando o gesto pictórico e diversificando as temáticas o que não exclui definitivamente a erupção do popular e do social. Os anos 60 ficam marcados pela sua partida para Paris (1963) e por um conjunto de séries como as “Tauromaquias” e “Les Courses” (Corridas de Cavalos) onde se exprime uma figuração mais fluída e dinâmica repleta de sobreposições cromáticas. Uma outra metamorfose nos espera no final da década com os ciclos dedicados ao Rugby e ao Maio de 68 nos quais predominam as formas sintéticas quase abstratas que se manifestarão ainda, e de forma diferente, nos corpos fragmentados e nos retratos dos anos 70. Outros caminhos são depois explorados através da incorporação continuada da colagem em desconstruções eróticas e pela recorrência da figura do tigre.

A literatura, que esteve sempre presente através da prática da ilustração, ganha nova predominância na década de 80: os universos de Baudelaire, Pessoa, Poe ou a mitologia, mas também os índios xingu da amazónia, com quem convive uma temporada, entram na sua pintura em tons feéricos e linhas vibrantes. Esta estética inconfundível vai ampliar-se em formato e alcance em pinturas dos anos 90 e já do século XXI, assimilando ou retomando referências tão

diversas como a Odisseia, Frida Kahlo, Lewis Carroll ou D. Quixote. Simbolicamente, o início dos anos 90 fica ainda marcado pela realização do retrato oficial do presidente Mário Soares que se destaca pela sua informalidade. No caso de Pomar, porém, falar da pintura é contar só parte da história. A sua produção estende-se abundantemente a áreas como o desenho, ilustração gravura, cerâmica, escultura e “assemblage” para além da arte pública (Por ex. o cinema Batalha, no Porto; a estação de metro do Alto dos Moinhos em Lisboa, mas também intervenções em Brasília ou Bruxelas), do ensaísmo e da poesia.

Nas últimas décadas a sua obra foi sendo profusamente reexaminada: a Fundação Gulbenkian dedicou-lhe uma retrospetiva em 1978. Uma exposição antológica itinerou pelo Brasil em 1990. “Autobiografia” (Museu Berardo, Sintra) e a “A Comédia Humana” (CCB) mostraram-se em 2004 e, em 2008, foi a vez de Serralves apresentar “Júlio Pomar: cadeia da relação”.

Mais recentemente, vem sendo revisitado em diálogo com artistas de gerações posteriores (de Julião Sarmento a Rui Chafes ou Igor Jesus) no atelier-museu Júlio Pomar, em Lisboa, com uma naturalidade que ajuda a perceber porque a sua obra se mantém relevante tantas décadas depois do seu início.

Ao mesmo tempo, foram-se sucedendo as distinções: em 1993 é lhe atribuído o prémio AICA; em 2000, o prémio Celpa/Vieira da Silva e, em 2003, o Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso. As condecorações incluem a Grã-Cruz da ordem do mérito; a Ordem da Liberdade, em 2004. A França tornou-o cavaleiro da ordem das artes e das letras no mesmo ano.

Agora que se conclui, um olhar retrospectivo sobre esta obra ajuda a entender como ela permaneceu fiel a um conjunto de condições (a figuração, a consciência do mundo, o alimento literário) ao mesmo tempo que se ia abrindo estilisticamente a uma multiplicidade de contaminações sem nunca perder a sua identidade essencial nem o lugar central que há muito possui no panorama artístico português.