Cultura | Exposição no MAAT

Felicidade é saber que há lances de escadas feitas de cubos de açúcar e ainda assim subi-los

“Esta exposição não o fará mais feliz”, avisa o designer austríaco Stefan Sagmeister, na sua própria caligrafia, nas paredes amarelas da exposição “The Happy Show”, que ficará em Lisboa, no MAAT, até 4 de junho. Nesta exposição, um conceito tão poroso, inalcançável, truncado e complexo como o de felicidade é desconstruído até parecer um mapa inteligível a qualquer um de nós. O caminho não é simples mas saímos a achar que há veredas onde podemos descansar

Texto e fotos Ana França

Repitam com Stefan Sagmeister: “Eu não devia deixar escapar oportunidades só porque me é mais confortável manter a paz”. Outra vez: “Eu não devia deixar escapar oportunidades só porque me é mais confortável manter a paz”. “The Happy Show”, a exposição do designer austríaco de 50 anos que tem no MAAT, em Lisboa, a sua última casa, podia ser só um exercício de cinismo e até poderia ser um bom exercício dessa categoria, já que o tema aqui, o tentacular, todo-poderoso tema, é a felicidade e os caminhos para “ter mais dela”, a expressão que Sagmeister usou para título de uma das suas várias TED Talks sobre o tema. Mas não é. Não há niilismo e era fácil cair nele. “Ser estúpido e egoísta e ter saúde são os três requerimentos para a felicidade mas se faltar a estupidez então os outros são inúteis”, escreveu Flaubert.

O itinerante e garrido “Happy Show”, onde tudo é amarelo, faz da felicidade aquilo que um designer costuma fazer de um qualquer pedido de um qualquer cliente: desmonta o conceito, oferece possibilidades e analisa as arestas do problema porque esta exposição não é (só) arte, quer ser um instrumento de análise pessoal e depois social. Para isso Sagmeister utiliza não só as ferramentas do design que conhece tão bem mas também as contribuições teóricas de analistas de comportamento e psicólogos célebres pela investigação que conduziram na procura pelas coisas que fazem os humanos felizes - ou infelizes. Sagmeister foca-se na chamada “psicologia positiva” ou “o estudo daquilo que faz da vida merecer ser vivida” de Martin Seligman, que depois foi trabalhada por outros académicos como Jonathan Haidt, consultor de Sagmeister nesta exposição e no filme que documenta a procura do designer pela felicidade.

O problema com a felicidade é que este é um conceito que muda não só de pessoa para pessoa mas de hora a hora dentro da mesma pessoa. Analisá-la, desmontá-la e traduzir as conclusões em instalações, tipografia, fotografia, escultura, som, vídeo e até em 14 minutos de cinema documental - uma pequena fatia do seu “The Happy Film” - não deve ter sido fácil. Sagmeister passou dez anos nisto e não é necessariamente uma pessoa mais feliz, pelo menos é isso que faz questão de referir em todas as entrevistas que deu sobre esta exposição. O próprio filme - um trecho do qual podemos ver nesta exposição - é uma exploração do caminho que o próprio designer fez na procura não tanto da felicidade mas de não estar sempre triste. Sagmeister embarcou numa viagem dividida em três partes: primeiro optou por se isolar em longos períodos de meditação segundo os ancestrais conceitos budistas, depois passou para a terapia psicológica “normal” e depois para antidepressivos químicos. Durante esse tempo foi documentando o que descobriu sobre si mesmo. E porque é que Sagmeister decidiu ir explorar múltiplas formas de não estar triste? Porque se apaixonou por uma mulher que não se manteve apaixonada por ele o mesmo tempo que ele se manteve apaixonado por ela. Mas a ciência diz que também isto é natural. Numa das paredes da exposição, Sagmeister avisa: “Quando estamos profundamente apaixonados, há uma libertação de dopamina para dentro do cérebro. É exatamente a mesma reação desencadeada pelo consumo de heroína e cocaína: não é sustentável”.

Quando deu início a esta busca, Sagmeister estava no pico da sua criatividade mas não estava muito feliz. Pensou que seria boa ideia tratar a felicidade como uma encomenda de um cliente. Talvez assim conseguisse dar-lhe forma, se fosse trabalho. Sagmeister sempre teve um problema, diz ele nas paredes desta exposição: a única coisa verdadeiramente estável na sua vida é e foi, quase desde o início, o trabalho.

O que Sagmeister tenta - e todos os créditos para ele por isso - é tornar o conceito de felicidade numa coisa feita de músculos, que ele acha que podemos treinar tal como treinamos para uma maratona. E ele faz tudo parecer simples - até simplista, às vezes. Como o próprio também já disse, a ideia foi quebrar um pouco aquela ideia de que quando vamos a uma exposição é suposto tudo ser muito complexo, difícil de apreender, exigente de uma matriz intelectual prévia e exercitada nas melhores universidades de artes do mundo para que tudo faça sentido. Entender o “The Happy Show” é fácil, entender a felicidade menos.

Uma das primeiras peças em exposição no MAAT é um medidor de felicidade. Há dez enormes tubos de plástico, cheios de pastilhas elásticas, numerados de um a dez. Cada visitante pode escolher retirar uma pastilha elástica do tubo com o número que mais se aproxime do quão feliz se sente. Em Lisboa, o 1 estava mais vazio que o 2, o 3, o 4, o 5 e o 6 mas era o número 7 aquele que tinha menos pastilhas. Ao lado, para quem considere esta uma abordagem infantilizante à aferição dos níveis de felicidade, Sagmeister adverte: “O que é que acham que os psicólogos fazem para saberem se uma pessoa é feliz? Perguntam”. Alguma da pesquisa que ele apresenta é bastante surpreendente. Por exemplo, ter filhos não parece fazer ninguém mais feliz mas ser casado sim. O dinheiro também só é importante até certo ponto, mas a noção de ganharmos mais do que os nossos vizinhos parece de facto fazer-nos mais felizes. Num vídeo informativo ilustrado com gráficos, Sagmeister mostra que, na América, depois dos 75 mil dólares por ano não faz grande diferença na autoavaliação da felicidade quanto mais se ganha acima desse valor. O vídeo mostra também que a maioria das pessoas que participa no estudo preferia ganhar 50 mil dólares ao ano num bairro onde a maioria ganhasse 25 mil do que ganhar 100 mil e viver num bairro onde a maioria ganhasse 250 mil.

Sagmeister não o referencia mas há um livro contra a felicidade e a favor da “angústia que acorda as almas”, como dizia Keats, do qual nos lembramos imediatamente ao ver as imagens das casinhas alinhadas do subúrbio norte-americano: “Contra a Felicidade - Em Defesa da Melancolia”, do professor de literatura norte-americano Eric G. Wilson. Nesse livro Wilson goza com a “insana e compulsiva esperança em coisas melhores” que “afeta” os norte-americanos e lembra Kafka ou Tennesse Williams para provar que não há mal nenhum na melancolia, que é daí que vem o génio. “A América foi estabelecida por gente que procurava utopias, a Terra Prometida que rapidamente se tornou um centro comercial onde o típico americano, apostado em experimentar a felicidade através do consumo, consome é Paxil, Prozac e Botox enquanto procura a gratificação imediata no seu telemóvel, na internet, em emojis risonhos e em igrejas que são empresas de felicidade”, escreve Wilson.

As pastilhas elásticas são apenas uma das experiências que nos convidam a interagir com a exposição, a fazer coisas acontecer, a tomar decisões que nos possam tornar mais próximos dos outros, já que a empatia e o “sentir o que o outro sente” é um dos caminhos apontados por Sagmeister para a felicidade. Ao lado desta conclusão está uma instalação com as letras da frase “Feel Others Feel” feitas de plástico e com ligeiro volume onde Sagmeister depositou pequenas quantidades de água. Ligadas a cada letra estão pequenas colunas de som, que fazem a água tremer com as vibrações. Os tremores na água são como as ondas de eletricidade que por vezes sentimos quando nos deixamos tocar pelos sentimentos dos outros. Os sons são crus, graves, intervalados e depois muito rápidos, eletrónicos até à distorção que parece saída de um álbum de My Bloody Valentine.

De uma outra parede saem várias mãos, cada uma delas segura um tabuleiro e nos tabuleiros há rebuçados ou chocolates para retirar. Uma das peças mais marcantes é uma bicicleta, isolada no meio de uma sala, que podemos pedalar para gerar eletricidade que por sua vez faz brilhar néons na parede com frases encorajadoras tipo “escolhe o desconforto” ou “fazer as coisas a que me propus aumenta aumenta os níveis de satisfação pessoal”. É um incentivo a um movimento de facto e não a um exercício mental.

Na parede oposta aos néons está um vídeo onde cubos de açúcar, dispostos como se fossem uma escada formam as letras “Step Up to It”. Não é fácil subir uma escada feita de um material tão frágil e é essa a beleza de mesmo assim decidirmos subi-la.

O “Happy Show” muda a cada cidade por onde passa. Em Viena, Sagmeister escreveu isto numa das paredes do Museu de Artes Aplicadas: “Em Viena olha-se para a felicidade de forma suspeita. Deves ser uma pessoa extraordinariamente fútil para estares interessado em persegui-la. Uma pessoa com alguma profundidade intelectual apercebe-se que a vida é uma experiência miserável e vive de acordo com isso”. Hemingway dizia uma versão da mesma coisa: “A felicidade em pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço”.