DIA MUNDIAL DA TELEVISÃO

Ligados à máquina. Afinal de contas, a televisão é boa ou má?

FOTO LUÍS BARRA

FOTO LUÍS BARRA

Nascemos e crescemos com ela, passamos Natais juntos, férias, passagens de ano, choramos, rimos, indignámo-nos e surpreendemo-nos, descobrimos, celebramos, festejamos, desconfiamos e aborrecemo-nos. Gostemos ou não da ideia, para muitos de nós será a mais prolongada e fiel relação que teremos nas nossas vidas. É justo que tenha o seu dia mundial, que esta segunda-feira se comemora

TEXTO PEDRO BOUCHERIE MENDES

Em 1961, Newton N. Minow havido sido nomeado pelo presidente John F. Kennedy como chairman da Federal Communications Commission (FCC), o órgão regulador da televisão nos Estados Unidos, uma atividade cuja vitalidade, pujança e influência crescia todos os anos. Minow escolheu o 9 de maio para a sua primeira intervenção pública durante um encontro com as televisões na National Association of Broadcasters. E não foi meigo.

Em The Wasteland Speech, como ficou conhecido o discurso, Minow referiu-se à televisão comercial americana como um enorme baldio e defendeu com unhas e dentes uma programação de interesse público num país onde toda a televisão era privada. “Quando a televisão é boa, nada, nem o teatro, nem as revistas, nem os jornais, nada é melhor. Mas quando a televisão é má, nada é pior. Convido-vos a sentarem-se em frente ao televisor e a lá ficar durante um dia, sem um livro, sem uma revista, sem um jornal (..). Vão ver uma sucessão de concursos, comédias acerca de famílias totalmente inverosímeis, (…), caos, violência, sadismo, homicídios (…). E infinitos anúncios (…). E acima de tudo tédio (…). ”

Televisão, interesse público e “baldio”

O nome original e próprio da comunicação de Minow era “Televisão e Interesse Público”, mas o violento ataque ao “baldio” que seria a televisão dessa era mudou-lhe para sempre o nome e fez com que este aviso entrasse num lote muito seleto dos melhores e mais importantes discursos proferidos no século XX nos Estados Unidos. E que programas havia nessa altura nos canais americanos que motivaram este empenho do regulador? Por exemplo, séries como Bonanza, Perry Mason, The Twilight Zone, Alfred Hitchcock Apresenta (que a RTP Memória está neste momento a repetir), O Preço Certo (sim, esse mesmo), ou seja programas que ficaram (e ainda estão) na história da televisão - e não necessariamente nos capítulos dedicadas à má qualidade ou ao que se convencionou chamar telelixo.

Os avisos sobre os cuidados a ter com a televisão são tão antigos como a televisão. Lá está a atenção devida às crianças, a má qualidade do prime-time, o excesso de anúncios, etc., etc.

O texto completo do discurso é muito interessante porque com pequenas atualizações poderia ser dito em qualquer outra altura. Os avisos sobre os cuidados a ter com a televisão são tão antigos como a televisão. Lá está a atenção devida às crianças, a má qualidade do prime-time, o excesso de anúncios, a responsabilidade das televisões e dos seus responsáveis, a crença de que o público quer, deseja e saliva por programas de maior qualidade, a dúvida sobre a medição das audiências como justificativo para uma má televisão, a necessidade de cumprir com o interesse do público, a apologia de uma televisão educativa, e, finalmente, uma interessantíssima preocupação com a imagem que o resto do mundo teria da América quando as emissões de televisão se tornassem globais, como estava prestes a suceder então: “What will the Latin American or African child learn of America from this great communications industry? We cannot permit television in its present form to be our voice overseas”, avisava em voz alta Minow.

ESTREIA Alberta Marques Fernandes na abertura da primeira televisão privada em Portugal FOTO D.R.

ESTREIA Alberta Marques Fernandes na abertura da primeira televisão privada em Portugal FOTO D.R.

Certo é que a televisão de hoje - o seu ritmo, procedimentos, práticas, a linguagem, o estilo e a forma - segue o modelo avassalador americano quase de olhos fechados. O que pensaria Minow se lho dissessem na altura? E que pensaria se lhe dissessem que hoje em dia em praticamente todo o mundo, a cultura americana e o inglês são dominantes, o que muito se deve à indústria do entretenimento do cinema e da televisão? Talvez respondesse que as suas palavras finais de 1961 se revelariam ironicamente premonitórias, pouco mais de meio século depois: “You must help prepare a generation for great decisions. You must help a great nation fulfill its future”. Elegendo Donald Trump, um homem de muita coisa e também da televisão?

Um tema chamado TV/WC

Uns vinte anos depois deste discurso, cinco ou seis anos a seguir à revolução do 25 de Abril de 1974, dava-se em Portugal aquilo que ficou conhecido como o boom do rock português. Artistas como Rui Veloso, UHF, Heróis do Mar ou GNR, entre outros, pareceram surgir todos ao mesmo tempo e depressa conquistaram um público habituado a música popular e de intervenção e para quem o Festival da Canção e da Eurovisão eram as ocasiões musicais mais importantes do ano. Um dos nomes mais fortes dessa altura foi uma banda do Porto chamada Táxi. No seu primeiro álbum (“Taxi”, de 1981) estava o tema Chiclete, que marcou uma geração e se tornou numa das mais emblemáticas canções da era, a par de “Chico Fininho”, de Rui Veloso, ou “Rua do Carmo”, dos UHF. “Chiclete” foi o primeiro single, como se dizia então. O segundo tema desse disco do grupo Táxi a ser tocado em rádios e que rapidamente passou para a boca de toda a gente era sobre televisão. A má televisão, pois claro. Chamava-se TV/WC e a letra é elucidativa:

Que tremenda situação

De quem vê muita televisão

A não ser que queira dormir sem fim

Então ela é melhor que Lorenin

E se falo desta maneira

É por ela ser tão foleira

Não transmite nada de jeito

Leva-me a taxa sem dar proveito

Quem vê TV Sofre mais que no WC

Na abertura o desenho animado

Logo depois o telejornal

Mais à noite um filme ultrapassado

E ao fim o Hino Nacional

Quando ligo o primeiro canal

Sempre o anúncio do sabão tal

E se mudo para o segundo

Então é que é o fim do mundo

Quem vê TV sofre mais que no WC

Neste 1981, seria emitida na RTP, então a única televisão portuguesa, a série britânica Reviver O Passado em Brideshead, uma das mais ambiciosas produzidas até então em todo o mundo. Anos antes havíamos tido A Família Bellamy. Seguiram-se nesta RTP a começar a década de 80, Passagem Para a Índia, a A Jóia da Coroa ou Dallas, além de vários outros programas nunca mais esquecidos. E todos os filmes da era clássica de Hollywood que possamos pensar, dos Western de John Ford aos musicais com Fred Astaire, ou os filmes de capa e espada de Errol Flynn.

FOTO LUCÍLIA MONTEIRO

FOTO LUCÍLIA MONTEIRO

Estes jovens adultos que formavam os Táxi tinham crescido num país a consolidar a Democracia depois de quase cinquenta anos de ditadura a ver a Abelha Maia, a Visita da Cornélia, Gabriela, Jogos Sem Fronteiras, entre muitos outros programas indiscutivelmente de qualidade. Mesmo assim, para estes rebeldes, que se exprimiam através do rock’n roll, quem visse televisão sofria mais do que no WC. Imagine-se agora esse sofrimento, com dezenas de canais a emitir vinte e quatro horas por dia. Por outro lado, há muito que críticos, intelectuais, educadores e artistas deixaram de berrar contra a televisão, circunstância que por si só daria vários artigos.

Sendo a forma sempre mais eficiente e cómoda de termos os nossos olhos no que podemos chamar “realidade em geral” e nos sentirmos mais parte dela, desde cedo que a televisão tem reputação duvidosa e merece desconfiança por parte do espectador. Não é de presumir que isso venha a mudar, na medida em que as televisões comerciais competem pelas audiências e pelo investimento publicitário e para isso correm riscos que muitas vezes ocasionam indiscutível “má” programação e “mau” e “manipulado” jornalismo.

Nos últimos anos, com a profusão de canais de notícias em todos os países, muitas vezes nos instantes em que somos confrontados com a barbárie e a violência - como no caso dos piores atentados - depressa a discussão deixa o essencial e os factos e passa a ser acerca daquilo que a televisão devia ou não ter mostrado desses acontecimentos

A televisão já é má quando é aborrecida, superficial, repetitiva, demagógica e postiça, e fica pior ainda e perigosa quando é sensacionalista e explora os piores instintos básicos de ódio e prazer com a desgraça e a humilhação alheia que nos acometem quando menos esperamos. Mas também tem as costas larguíssimas e já sabemos que quando as pessoas têm um martelo na mão, veem pregos em todo o lado. Tanto assim é que nos últimos anos, com a profusão de canais de notícias em todos os países, muitas vezes nos instantes em que somos confrontados com a barbárie e a violência - como no caso dos piores atentados - depressa a discussão deixa o essencial e os factos e passa a ser acerca daquilo que a televisão devia ou não ter mostrado desses acontecimentos ou de como a televisão terá induzido esses comportamentos por ter sido usada por terroristas ou pelas polícias por exemplo.

Afinal, o que é televisão?

Muita gente não faz a menor ideia de quem foi Groucho Marx, ou o que fez, mas conhece aquele disfarce simples de carnaval formado por uns óculos em baixo de umas grandes sobrancelhas, com um nariz e um bigode colado, inspirados na sua figura e é provável que conheça duas das suas citações mais famosas e não tenha problemas em usá-las. “Não seria membro de um clube que me aceitasse como sócio” é uma. A outra é, claro, esta: “A televisão é muito educativa. Sempre que alguém a liga, saio da sala e vou ler um livro.” Por falar em livros, experimente-se abrir qualquer dicionário de citações e tente-se encontrar uma citação negativa ou sobre os aspetos negativos de Música, Teatro ou Cinema.

FOTO D.R.

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Desafio ainda mais maior será encontrar uma citação positiva acerca da televisão, uma das categorias do “social” que mais unanimidade gera nas críticas e ataques e que menos defensores tem. E contudo, parece que não passamos sem ela. Ainda este domingo à noite, e só nos canais generalistas, quase três milhões de portugueses viram os principais programas, The Voice, Secret Story e Best Bakery (sem surpresa, todos com nomes em inglês, porque a vida moderna é assim mesmo, muito falada em inglês). Outros quase dois milhões estavam nos outros canais, e desses ainda 250 mil estavam pelas onze da noite ou na SIC Notícias, ou na TVI24 ou na RTP 3 a ouvir falar sobre futebol.

Por que é que a televisão é tão desdenhada se é tão vista? Por ser uma janela aberta para o mundo e esse mundo nos parecer sobretudo cheio de tragédias, desgraças, banalidades e futilidades?

Por que é que a televisão é tão desdenhada se é tão vista? Por ser uma janela aberta para o mundo e esse mundo nos parecer sobretudo cheio de tragédias, desgraças, banalidades e futilidades? Por promover entretenimento básico e sentirmos que merecemos melhor do que isso? Porque toda a gente parece feliz, satisfeita, cheia de energia e isso, se formos mesmo honestos, nos deprime? Ou porque a televisão parece estar-se nas tintas para nós ao confrontar-nos com aquilo que somos?

Os canais de notícias em Portugal têm programas onde se discutem penalties durante horas mas deveriam ter programas onde se discute a política de energias renováveis ou o estado da sinalização rodoviária nas nossas estradas? Também há esses programas, têm é muitíssimo menos público. E nós tendemos a ver aquilo que toda a gente vê, porque é disso que se fala ou falará amanhã de manhã no emprego. A televisão é isto e aquilo mas também é partilha.

Quando vê televisão, o espectador é envolvido para um sistema ordenado de significados, dentro de uma lógica cultural global, homogénea e convergente e sempre, a cada ano, mais ampla. Vemos o mesmo episódio da Guerra dos Tronos que suecos, coreanos, polacos, chilenos ou japoneses, porque a série é emitida em quase todo o mundo e quase ao mesmo tempo. Vemos as mesmas imagens da atriz que arrasou com o vestido naquela gala. Vemos o mesmo hat-trick de Ronaldo contra o Atlético de Madrid repetido vezes sem conta. Vemos o mesmo Donald Trump que todos os outros habitantes do planeta. Mas isso é mau? Ou é bom? Parece ser mais mau do que bom, por algum motivo que é difícil dizer ao certo qual será, também porque a televisão é tanta coisa ao mesmo tempo que é difícil encontrar um ponto de partida para este ponto de chegada com o qual muita gente parece concordar quase de olhos fechados. Como se percebe, a televisão é o conjunto dos programas e dos canais a que temos acesso em nossas casas – e mais recentemente um pouco por todo o lado onde haja Internet -, mas é claramente mais do que isso.

A televisão talvez seja pior que as obras na estrada, porque não é mero transtorno passageiro e tem uma característica que torna esta estranha relação, muito assente na sua negatividade, numa questão pessoalíssima: a televisão é voluntária - temos mesmo de a ligar e olhar para ela

Começando por este lado, embora pudesse ser por outro, apesar da sua utilidade como meio que informa e entretém, para muita gente a televisão está irremediavelmente arrumada no pensamento na categoria das coisas que existem e acontecem e impedem uma vida perfeita. As filas no trânsito. O vento na praia em agosto. A espera nos consultórios. A rolha na garrafa de vinho que se desfaz. As obras na estrada. A televisão é desta família de aborrecimentos.

Quantos de nós não sublinharam umas férias excelentes com um perentório “nem liguei a televisão”? Quantos de nós não ouvimos dizer “a televisão está cada vez pior”? Quantos de nós não nos indignámos com qualquer coisa na televisão e demos por nós, coletivamente, a generalizar sobre o poder perverso e malévolo da televisão, nos jornais, nas redes sociais, nas nossas conversas? E a televisão talvez seja pior que as obras na estrada, porque não é mero transtorno passageiro e tem uma característica que torna esta estranha relação, muito assente na sua negatividade, numa questão pessoalíssima: a televisão é voluntária - temos mesmo de a ligar e olhar para ela e pelos vistos é o que fazemos, com aquela biografia de Groucho Marx que estamos para ler há tanto tempo, ali parada, a amarelecer há meses.

Como as crianças culpam os professores, nós culpamos o trânsito pelos atrasos, os políticos culpam o Banco Central Europeu ou os treinadores de futebol culpam a arbitragem, é provável que culpemos a televisão por dezenas de livros que deveríamos ter lido ou até mesmo por centenas de horas que passamos no sofá com má postura e que agora temos de corrigir na fisioterapia. Não admira que se vejam sorrisos de satisfação e vingança porque em breve a televisão tal qual a conhecemos será derrotada pela Internet e pelo Digital. Suspeito pelas reações que as pessoas, além da muito humana desforra, presumem que virá daí, desse digital, um mundo melhor, que matará “má” televisão.

A televisão é muitas coisas ao mesmo tempo para nós, os espectadores, os seus clientes, as suas testemunhas. Desde logo, e na nossa língua, a palavra designa o aparelho recetor que temos na sala, no quarto ou na cozinha. Também indica a indústria da televisão, o conjunto dos canais e produtoras. Funciona ainda como nome coletivo do conjunto dos programas a que nos referimos quando pensamos ou afirmamos “hoje vou ver televisão”. A televisão é um hábito, uma companhia, pode ser um ritual naquela aceção popular do termo que usamos no dia a dia, um paliativo para quando estamos adoentados, um meio a partir do qual nos mantermos informados ou divertidos, um instrumento usado para fazer chegar mensagens publicitárias a alvos, ou um enorme obstáculo àquilo que consideramos ser uma educação correta para os nossos filhos ou um dissuasor de conversas familiares importantes.

Finalmente, caso sejamos desconfiados, televisão é o nome que damos à entidade obscura e intangível que nos quer massificar ou transmitir mensagens que nos vão modelar e condicionar, uma espécie de corporação muito poderosa à qual é preciso estar vigilante. Já Minow falava disso em 1961, porque haveria de ser diferente hoje em dia?

Além disto tudo, e como é evidente, a televisão pode ser um simples e inocente prazer, uma indulgência, uma indolência, uma forma de escaparmos a um dia mau ou de não pensarmos em demasia sobre a chuva forte que nos impede de sair à rua com a utilidade acrescida de nos mostrar que a greve no aeroporto terminará amanhã, embora, pelos vistos, isso pareça ser fraco consolo e impeditivo de colocar a televisão num qualquer patamar positivo de apreciação.

Aqueles que estão na televisão – numa série, numa novela, a apresentar um concurso ou um telejornal – estão vestidos e penteados de acordo com a época atual, de forma muito marcada (salvo se o programa pretender retratar outra época, bem entendido). Mesmo quem não fosse a uma loja de roupa perceberia, pela televisão, que no ano passado se usaram casacos com cotoveleiras

televisão também pode ser companhia, mais ou menos presente, enquanto aspiramos a sala, passamos a ferro ou simplesmente esperamos que chegue a hora do jantar, ou a maneira de que temos de ter assunto para falar com os outros no dia seguinte na escola, no emprego, nas redes sociais. Porque na nossa televisão passa-se exatamente o mesmo que nas televisões dos outros, numa coincidência que é muito peculiar assim pensemos nela. Em Valença do Minho, Viseu, Tábua, Cascais, Mértola, Lagos, Funchal, S. Miguel, o telejornal desta noite será o mesmo, igualzinho. Cada um é como é, mas há coisas que nos aglutinam: a mesma bandeira nos mastros e o mesmo sol lá em cima no céu, o mesmo presidente da República e os mesmos carros da PSP, e a mesma emissão de televisão.

O tenso presente

Hoje, como todos os dias desde que existe, a televisão praticamente só quer saber do presente. Mais logo nos telejornais falar-se-á do que aconteceu hoje. Daqui a nada os programas começarão a ter árvores de natal nos seus cenários. Os programas de debates falarão do que acontecer daqui até lá. Aqueles que estão na televisão – numa série, numa novela, a apresentar um concurso ou um telejornal – estão vestidos e penteados de acordo com a época atual, de forma muito marcada (salvo se o programa pretender retratar outra época, bem entendido).

Mesmo quem não fosse a uma loja de roupa perceberia, pela televisão, que no ano passado se usaram casacos com cotoveleiras. Quem está mais atento assistiu a quase todos os nossos comentadores a aparecerem em estúdio com um Ipad a brilhar, quando este aparelho foi lançado pela primeira vez em 2010-11, como se o papel e a caneta tivessem sido subitamente proibidos. Olhem agora e verifiquem que aconteceu a esses comentadores o mesmo que a muitos de nós, o Ipad fica em casa porque talvez a sua utilidade seja outra que não o de tomar notas ou consultá-las em programas de televisão em direto.

A televisão farta-se de nos tentar agradar. Como meio de comunicação de massas omnipresente porque cada um de nós optou por comprar um aparelho e tê-lo em casa ligado, funciona como um mediador e tradutor entre nós e o mundo presente e até um estabilizador e um indutor de ordem, uma garantia de segurança de como a vida, apesar de tudo, se mantém mais ou menos controlada.

Trump foi eleito há duas semanas e o mundo quase acabou, mas entretanto os assuntos já são outros e o mundo, a acabar, acabará por outra razão qualquer. É uma ordem artificial, falsa e manipulada? Eventualmente, não digo que não, mas será aquela que temos mais à mão e assim, bem ou mal, a televisão explica-nos e enquadra os conflitos globais, antecipa cenários eleitorais, teoriza, problematiza, equaciona as grandes questões na ordem do dia, revela notícias, escândalos, casos, crimes, mas também nos informa que há um novo festival do Torresmo ou que há cada vez mais portugueses a deixar crescer a barba.

Engana-se porque nos disse que Hillary seria a mais provável vencedora? Sim, claro que se engana, a televisão é feita por pessoas e essas pessoas estavam convencidas disso. Como escreve o sociólogo francês e estudioso dos media Pierre Bourdieu no seu Sobre a Televisão, “a televisão é um universo em que temos a impressão que os agentes sociais, ao mesmo tempo que têm a aparência da importância, liberdade, da autonomia, e por vezes, até uma aura extraordinária, são fantoches de uma necessidade que é preciso detetar e trazer à luz do dia”. Essa “fantochada”, para usar o termo de Bourdieu, alastra a toda a televisão e ao seu caráter verídico e de amplificação - e não necessariamente apenas na informação e no jornalismo.

A vida é feita de outras “fantochadas”. O Natal, a Páscoa, a Queima das Fitas, as Férias, o Regresso às Aulas, os Saldos, as Campanhas Eleitorais e essa recente fantochada que a televisão importou chamada Halloween. Como qualquer estudante do primeiro ano de Sociologia saberá, as pessoas para viverem juntas em sociedade precisam de fantochadas que possam partilhar umas com as outras

Pessoas que lançam livros e discos, que organizam festivais ou exposições, que têm uma associação para promover, continuam a querer falar disso em programas de televisão, apesar de provavelmente as redes sociais conseguirem levar essa mensagem muito mais longe. Mas só a televisão, parece, tornará as obras, os projetos e conquistas a sério porque pelos vistos nenhum de nós está a salvo desta dimensão de validador do presente que é a televisão, enquanto poderosíssimo marcador de realidade e daquilo a que podemos chamar verdade - assumindo que partilhamos dessa ideia geral, com exceção dos que acreditam que os políticos são na verdade extraterrestres disfarçados. Não “verdades” metafísicas ou filosóficas, mas de “verdades” como as que revelam que os refrigerantes engordam, os linces caminham para a extinção e a União Europeia está em crise.

Só que a vida é feita de outras “fantochadas”. O Natal, a Páscoa, a Queima das Fitas, as Férias, o Regresso às Aulas, os Saldos, as Campanhas Eleitorais e essa recente fantochada que a televisão importou chamada Halloween. Como qualquer estudante do primeiro ano de Sociologia saberá, as pessoas para viverem juntas em sociedade precisam de fantochadas que possam partilhar umas com as outras. Quando em ouvimos na televisão que os hotéis no Gerês estão cheios por altura da passagem de ano ou que este ano a colheita de cereja fica aquém, são essas as ideias que vamos repetir em conversas com amigos, porque as tomamos como verdade.

A maldita televisão socializa distribuindo conhecimento e onde antigamente se ia à missa, se falava com os vizinhos, se sabiam as intrigas da aldeia na taberna ou na mercearia, numa sociedade diferente e mais alargada, a televisão serve também para essa função que alimenta a nossa necessidade básica enquanto pessoas, de sabermos o que se passa com os outros à nossa volta.

Lições de moral

O corolário destas dimensões é um outro aspeto importante da televisão: o seu carácter (in)voluntário de guardião e garante de uma certa moral e de uns certos costumes vigentes numa determinada altura. Qual moral e quais costumes? Os da maioria, claro, porque a televisão é de muita gente. Podemos dizer que a televisão é muito politicamente correta e muitas vezes absolutamente sonsa, para não dizer hipócrita, mas nós também somos, num minuto fazemos uma coisa, no outro o seu oposto. Num telejornal pode falar-se da obesidade infantil e em seguida do festival do chocolate sem qualquer prurido, como se pode atacar o consumismo, com especialistas e psicólogos a perorar sobre o endividamento e já a seguir falar-se das compras de Natal. Nós somos assim, por que haveria a televisão de ser diferente? Nós também podemos ver a reportagem a lamentar como este mundo é consumista, de computador no colo a encomendar aquela camisola em saldo naquele site, sem que haja propriamente uma crise existencial. O mais certo é nem notarmos.

Podemos dizer que a televisão é muito politicamente correta e muitas vezes absolutamente sonsa, para não dizer hipócrita, mas nós também somos, num minuto fazemos uma coisa, no outro o seu oposto. Num telejornal pode falar-se da obesidade infantil e em seguida do festival do chocolate sem qualquer prurido

Ao contrário da literatura, do cinema, do teatro ou mesmo da música, a televisão que vemos todos os dias não aspira à imortalidade ou à alteração da ordem, antes pretende ser o tal escrivão acrítico nos vários julgamentos no dia a dia que vão decorrendo. E é interessante verificar que raras vezes a televisão toma partido, a não ser o partido de um certo senso comum ou de uma certa moral coletiva. Na televisão, todos os artistas merecem consideração, todas as regiões merecem o mesmo destaque, todos os dramas são importantes, todos os velhinhos e crianças são amorosos, todos os trabalhadores merecem lutar por aumentos, todas as greves se justificam, todos os títulos vencidos pelas nossas seleções são de saudar, todos os artistas fazem grandes discos, todos os prémios entregues em cerimónias são importantes.

Quando se descobre que o velhinho amoroso era, afinal, um vizinho execrável que acumulava lixo, a televisão não perde a compostura, muito menos admite que se enganou e parte para a análise em estúdio ou reportagem acerca de pessoas que acumulam lixo e o que as leva tal comportamento.

Os países são fortes ou fracos nos seus hábitos e gostos e a televisão reflete-o. Se os portugueses que gostam muito de telenovelas, o que se pode fazer? Antigamente, com quatro canais apenas, poderíamos criticar a televisão por servir mais do mesmo, mas hoje, com tantos canais e tanta oferta, ainda há milhões de pessoas que seguem telenovelas. Há telenovelas em pelo menos dez canais diferentes em Portugal todos os dias do ano. Todas sem exceção têm público, alguém a vê. Antigamente, com quatro canais, poderíamos criticar o excesso de futebol na televisão, mas hoje até nos canais de notícias se transmite futebol sem que o espectador reflita se isso faz ou não sentido: vê e ponto final. E quando não se transmite, discute-se.

Simples e friamente, a televisão é uma indústria - como há tantos outras - que segue uma lógica concorrencial, devidamente balizado pelos limites legais, regras, regulamentos, normas, convenções, práticas, segredos e estratégias, não para manipular o público e condicionar as suas ideias e pensamentos, mas para ganhar dinheiro

Claro que as televisões querem é audiências, espectadores, porque essa é outra das respostas acertadas à pergunta “o que é a televisão”. Um negócio. Simples e friamente, a televisão é uma indústria - como há tantos outras - que segue uma lógica concorrencial, devidamente balizado pelos limites legais, regras, regulamentos, normas, convenções, práticas, segredos e estratégias, não para manipular o público e condicionar as suas ideias e pensamentos, mas para ganhar dinheiro. Não nos incomoda que as fábricas de sapatos em S. João da Madeira queiram ganhar mais dinheiro ou que os tuk-tuk aumentem os preços, mas parece ser grave que as televisões queiram ganhar dinheiro. Mas a verdade é que precisam dele. Para quê? Para pagarem a jornalistas que estão seis meses a fazer uma reportagem sobre uma crise num banco por exemplo, porque se há uma característica que o jornalismo de qualidade tem é a de custar muito dinheiro.

A televisão é mesmo muita coisa ao mesmo tempo, dependendo do ponto de vista que escolhamos e até tem direito ao seu dia mundial. O mais certo é termos reflexões, avisos e alertas sobre o seu estado atual, mas nunca a ficção televisão teve tanta qualidade por exemplo. E nunca tivemos tantos canais diferentes, portanto tantas perspetivas e visões diferentes. A televisão ajudou a eleger Trump? Admito que sim, mas a televisão também ajudou Ronald Reagan a ajustar a sua visão para o programa de armamento “Guerra das Estrelas”, limitando-o, e ajudou Gorbatchov a reforçar a Perestroika na antiga URSS. Como? Um simples filme chamado Day After, produzido para televisão, emitido em 1983, que mostrava uma Kansas arrasada por um ataque nuclear foi uma ilustração de um mundo que poderia ser caso americanos e russos levassem a guerra fria a uma guerra quente. Reagan admitiu na sua biografia que Day After o deprimiu e o fez repensar a estratégia e sabe-se que o filme foi emitido repetidas na televisão soviética pouco tempo depois do movimento de Gorbatchov ter iniciado a abertura. Devemos à televisão o fim da corrida ao nuclear nessa era? Não só, mas também diria.

A televisão agora é muito sensacionalista? Já havia repórteres da RTP no átrio do hospital da Cruz Vermelha, a entrarem em direto em 1968, por causa da queda da cadeira de Salazar. A televisão impinge-nos os políticos? Mas que outro modo teríamos de os conhecer? Iríamos a comícios? É preferível o imprevisto Trump ou o pulha sem escrúpulos como é o ficcionado e televisivo Frank Underwood, de House of Cards?

Seja o que for que é a televisão, para todos os efeitos desde há cerca de 60 anos que vivemos com ela à nossa frente, quase sempre ligada, quase sempre feliz, animada e ruidosa, quase sempre a falar diretamente connosco, de tudo e mais alguma coisa. É lá de casa, quotidiana, habitual, como apertar o cinto de segurança no carro, sendo tão visível e invisível como as lojas de bolas, colchões e toalhas a caminho da praia.

Nascemos e crescemos com ela, passamos Natais juntos, férias, passagens de ano, choramos, rimos, indignámo-nos e surpreendemo-nos, descobrimos, celebramos, festejamos, desconfiamos e aborrecemo-nos e, quem sabe, iremos morrer velhinhos a olhar para ela. Gostemos ou não da ideia, para muitos de nós será a mais prolongada e fiel relação que teremos nas nossas vidas. É justo que tenha o seu dia mundial.