CIÊNCIA

Antropoceno. Fórmula da nova era geológica inventada na Universidade do Porto

Orfeu Bertolami, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto: “Há evidências claríssimas de que o sistema terrestre está descontrolado” Foto Fernando Veludo/NFACTOS

Orfeu Bertolami, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto: “Há evidências claríssimas de que o sistema terrestre está descontrolado” Foto Fernando Veludo/NFACTOS

Chama-se “Equação do Antropoceno” e permite prever como as atividades humanas perturbam o equilíbrio do sistema terrestre alcançado ao longo dos últimos 11.700 anos

Texto Virgílio Azevedo

O gabinete de Orfeu Bertolami, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), tem um grande quadro branco na parede, atravessado por expressões matemáticas e gráficos escritos por canetas de acetato de várias cores. Foi aqui que o professor catedrático e diretor do Departamento de Física e Astronomia teve a ideia de criar a primeira equação que representasse o estado atual do sistema terrestre, perturbado de forma crescente pelas atividades humanas.

Desafiou para esta tarefa ambiciosa Frederico Francisco, bolseiro de pós-doutoramento da FCUP, hoje professor auxiliar convidado daquele departamento. E em janeiro deste ano começaram a trabalhar no projeto. O objetivo era encontrar a Equação do Antropoceno, a nova era geológica que está a emergir devido à interferência da ação humana nos equilíbrios da Terra existentes desde há 11.700 anos, quando começou a era geológica do Holoceno. E em julho foi publicado na revista internacional “Global and Planetary Change” um artigo intitulado “Uma estrutura física para o Sistema Terrestre, a Equação do Antropoceno e a Grande Aceleração”.

“Demonstramos inequivocamente que o Holoceno é uma era muitíssimo especial, onde uma perturbação que não precisa de ser muito grande, à escala astronómica ou geológica, pode desequilibrar o sistema terrestre”, explica Orfeu Bertolami ao Expresso. “O modelo matemático que criámos vai nessa direção e há evidências claríssimas de que o sistema terrestre está descontrolado.” No fundo, “é uma abordagem completamente nova às alterações climáticas e ao Antropoceno”.

Frederico Francisco acrescenta que “o sistema terrestre é incrivelmente complexo, mas é aqui que estamos a tentar entrar”, através da Equação do Antropoceno. “O nosso modelo tem um substrato da termodinâmica e da física, enquanto os modelos atuais usam, na sua maioria, séries estatísticas para fazerem previsões.” A termodinâmica é o ramo da física que estuda as causas e os efeitos de mudanças na temperatura, pressão e volume à escala macrocósmica.

A “Grande Aceleração”

A pequena equipa da Universidade do Porto conclui, baseada na chamada “teoria de transições de fase”, que “a transição do sistema terrestre das condições estáveis do Holoceno (das suas propriedades) para a condição influenciada pela atividade humana do Antropoceno é, na verdade, uma transição de fase, isto é, uma mudança qualitativa que o afasta do estado de equilíbrio do Holoceno”. Este processo é, assim, genericamente, uma alteração global decorrente de mudanças num parâmetro de controlo relevante para um determinado sistema físico, como a temperatura.

É neste contexto que Orfeu Bertolami e Frederico Francisco definem a Equação do Antropoceno,“a chamada Grande Aceleração”, e fazem três demonstrações. A primeira é que a temperatura do sistema terrestre diverge da temperatura média do Holoceno na proporção da raiz cúbica da intervenção humana. A raiz cúbica de um número é o valor que, ao ser multiplicado três vezes por si mesmo, dá como resultado esse número. Por exemplo, a raiz cúbica de 27 é 3. A segunda demonstração revela que o afastamento do equilíbrio do Holoceno em resultado da intervenção humana “pode ser tão drástico como aqueles que são provocados por causas naturais, astronómicas e geofísicas”. E a terceira diz que “a suscetibilidade do sistema terrestre aos efeitos da atividade humana é muito mais relevante perto desta fase de transição” do que em relação a fatores naturais.

Equação do Antropoceno

Com efeito, ao longo da sua evolução, o sistema terrestre foi conduzido predominantemente por forças astronómicas e geológicas, mas nos últimos 60 anos assistimos a um aumento acentuado da taxa de crescimento dos impactos da atividade humana, em particular no ambiente, no clima e na biodiversidade. “Esta tendência recente é mais evidente quando comparada com a notável estabilidade dos últimos dez milénios, o Holoceno, a época que começou com o fim do último período glaciar”, assinalam os cientistas da Universidade do Porto.

Foi por isso que surgiu na comunidade científica, a partir do ano 2000, a hipótese de que a Terra estava a entrar numa nova era geológica, conduzida pelas mudanças provocadas pelas atividades humanas – o Antropoceno. A equação criada na Universidade do Porto representa, assim, a taxa de mudança do sistema terrestre nesta nova era.

As eras geológicas correspondem a cada uma das grandes divisões do tempo geológico da Terra. O tempo geológico mede o processo de nascimento, formação e transformação do nosso planeta. O tempo histórico diz respeito à emergência das civilizações (humanas) e à sua capacidade de comunicação escrita. Hoje estamos a assistir à transição do Holoceno para o Antropoceno, a primeira era geológica que resulta da interferência da ação humana nos equilíbrios do sistema terrestre.

Casa Comum da Humanidade

É por isso que vai ser legalmente constituída na Universidade do Porto (UP), esta segunda-feira, a associação internacional Casa Comum da Humanidade (CCH), que pretende “garantir a preservação das condições de habitabilidade do planeta através de um novo modelo de governação global dos recursos naturais, onde é usado um inovador sistema de contabilidade ambiental e económica que compensa quem conserva e valoriza a Natureza e penaliza quem a destrói”, diz um comunicado da universidade. A CCH baseia-se numa nova construção jurídica a partir do conceito de condomínio – o “Condomínio da Terra” – e apoiada nas ciências do sistema terrestre.

Estes conceitos foram desenvolvidos por Orfeu Bertolami e pelo jurista Paulo Magalhães, professor da Faculdade de Direito da UP. “A Equação do Antropoceno vem confirmar em termos matemáticos o que os chamados ‘Limites do Planeta’ diziam”, explica Paula Magalhães ao Expresso, “o que vem facilitar a previsão dos cenários futuros, a matemática do equilíbrio e do desequilíbrio do sistema terrestre na nova era geológica”.

A Casa Comum da Humanidade pretende garantir a preservação das condições de habitabilidade do sistema terrestre Foto GLOBAL_PICS/GETTY

A Casa Comum da Humanidade pretende garantir a preservação das condições de habitabilidade do sistema terrestre Foto GLOBAL_PICS/GETTY

Os Limites do Planeta definem nove processos críticos para manter este sistema favorável à vida: alterações climáticas, situação da camada de ozono da estratosfera, acidificação dos oceanos, integridade da biosfera (biodiversidade), libertação de poluição química, mudança do uso da terra, consumo de água, fluxos biogeoquímicos (de azoto e fósforo para a bioesfera e oceanos) e carga de aerossóis na atmosfera.

O jurista acrescenta que a nova equação “permite ainda termos uma métrica para o sistema de contabilidade ambiental e económica da CCH e para o seu modelo de governação global”. É por isso que a Universidade do Porto vai lançar um projeto de investigação conjunto entre as faculdades de Direito e de Ciências, com participação internacional.

A Equação do Antropoceno pode ter também uma aplicação surpreendente no futuro: a terraformação do planeta Marte quando este for colonizado pelos primeiros humanos, isto é, o processo para tornar o planeta vermelho habitável, favorável à vida, como a Terra. “Neste caso existe um sistema planetário morto e queremos reavivá-lo”, esclarece Orfeo Bertolami. “Isto é possível e teríamos de fazer uma intervenção humana ao contrário da que estamos a fazer hoje na Terra.”