Brett Kavanaugh: o mal prescreve?
As nomeações de Donald Trump para o Supremo perdurarão por décadas e terão um efeito profundo. Com Brett Kavanaugh, teme-se um recuo na questão do aborto, com a reversão do caso Roe vs. Wade. Teme-se uma recusa da imposição de limites ao porte de arma. Este magistrado defendeu que a venda de armas semiautomáticas não pode ser proibida. Teme-se um bloqueio a investigações a Trump por quem já defendeu a imunidade do Presidente, apesar de ter estado envolvido no processo para o afastamento de Bill Clinton. A tudo isto junta-se a alegada participação de Kavanaugh no desenho das técnicas de interrogatório estabelecidas por Bush para legalizar a tortura. Quando foi nomeado para o Tribunal de Recurso de Washington D.C, o juiz negou o seu envolvimento, o que levou os democratas a acusá-lo de perjúrio, coisa bem grave nos EUA. Agora voltou a fazê-lo, numa audição ao Senado onde foi bastante evasivo em relação a quase todos os temas polémicos.
Ainda assim, nada parecia travar a aprovação do seu nome. E nem uma acusação anónima de que teria tentado violar uma rapariga na juventude esmoreceu os republicanos. Até que a acusação passou a ter um nome: Christine Blasey Ford, uma professora universitária com alguma reputação. A tentativa de violação terá acontecido quando Christine tinha 15 anos e Kavanaugh, que estaria embriagado numa festa, 17. Há 36 anos.
Mesmo quando está em causa uma acusação de violação e a nomeação de um radical para o Supremo dos EUA, tendo a desconfortavelmente defender que mesmo a punição social tem um prazo de validade
É verdade que a alegada vítima demorou quase uma vida a falar. Mas sabe quem sabe pelo que passam as vítimas de agressões sexuais que o processo pode ser doloroso e lento. Ainda mais quando, sendo o abusador alguém com poder, se presta ao enxovalho e humilhação públicas. E sabemos que o ambiente mudou, sobretudo nos últimos anos. Há muito maior disponibilidade para ouvir as vítimas. Esta é a única coisa boa desta história: o abuso sexual de mulheres passou a ser visto, nos EUA, como uma coisa séria. E isso, com todas as críticas que lhes tenho feito, é mérito de movimentos como o MeToo. Por fim, a nomeação do seu agressor para um cargo tão relevante pode ter sido a gota de água. Seja como for, é bom dizer, Ford não se lembrou disto agora. Há registos de declarações suas sobre o assunto nas notas de dois psicoterapeutas.
Só que a prescrição judicial não é um mero formalismo. É um elemento central do Estado de Direito. Primeiro, porque assumimos que um homem de 53 anos é uma pessoa diferente do que foi quando era um rapaz de 17. Depois, porque a ideia de reinserção deixa de fazer sentido. Por fim, porque ninguém se pode defender tanto tempo depois, quando quase todas as provas desapareceram. Não se pode viver uma vida inteira com um cutelo sobre o pescoço, pronto para ser largado quando for mais útil. Podem responder que isto não é um processo judicial, apenas uma audição para uma nomeação. Pior um pouco: o acusado perde todas as garantias de defesa.
A ser verdadeira a acusação, Kavanaugh não mostrou qualquer arrependimento e tentou desacreditar a sua alegada vítima. Apesar do seu passado, não hesitou em participar na redação do relatório sobre a relação extraconjugal de Bill Clinton com Monica Lewinsky. Um caso seguramente menos grave que teve evidentes propósitos políticos. Em resumo, se esta história é verdadeira, Kavanaugh continua a ser um traste. Um traste prestes a ter muito poder. Mas isso não simplifica o debate. A questão é se princípios fundamentais do Estado de Direito podem ser abandonados. Mesmo quando está em causa uma acusação de violação e a nomeação de um radical para o Supremo dos EUA que não terá, como não teve no passado, estes pruridos. Não tenho uma resposta confortável. Mas tenderia a desconfortavelmente defender que mesmo a punição social tem um prazo de validade.
Sobre a não recondução de Joana Marques Vidal, escrevo na edição semanal do EXPRESSO, amanhã.