Francisco Louçã

Estado da noção

Francisco Louçã

Kalimera, bem-vindos de volta à normalidade?

O vídeo de Mário Centeno sobre a Grécia tem várias leituras possíveis, desde o seu conteúdo (que indica o que pensa o autor, admita-se) ao seu impacto (o desejado, mas também o imprevisto). Confesso que, depois de tudo o que foi dito, me interessa mais o impacto e o significado das respostas a Centeno, que definem alguns contornos interessantes da política portuguesa.

No entanto, o conteúdo merece ser escrito em pedra. Houve um processo do qual “todos aprendemos as lições”, começa por dizer o presidente do Eurogrupo, acrescentando que “isso agora é História”. Admita-se que possa haver alguma mensagem cabalística por revelar, pois não foi esclarecido o que seriam as tais saborosas “lições, mas se forem as referências seguintes às “más políticas do passado” na Grécia estamos em puro dijsselbloemês. No mesmo dicionário cabe o paternalismo da “responsabilidade” acrescida que agora incumbe aos gregos (ilustrado sub-repticiamente no vídeo com uma imagem de Tsipras). Mas o mais significativo é que, segundo Centeno, com as medidas de austeridade, “a economia foi reformada e modernizada”, mesmo sabendo-se que “estes benefícios ainda não são sentidos em todos os quadrantes da população”, mas “gradualmente serão”. “Nesse sentido, a Grécia regressou hoje à normalidade. Por isso, bem-vindos de volta”, um sorriso e está cumprida a função, assim tipo moralista, como agora se diz.

Sobre o fracasso da política europeia imposta à Grécia já escrevi a minha opinião aqui há poucas semanas. Notei então que Moscovici, um socialista francês, se tinha excedido no paternalismo bacoco (Ulisses volta à pátria, escrevia o homem) mas que Regling, do mecanismo europeu que vai gerir os dinheiros, se atrevia a mostrar a mão dura que vai garantir a agiotagem. Diga-se, de passagem, que as noções de “responsabilidade” e “controlo” soam mais realisticamente prussianas quando são evocadas pelo chefe dos credores. O facto é que a economia da Grécia foi destroçada, sobrevive com um surto de turismo barato e é um barco de papel lançado ao mar à espera de um milagre que se tornará um pesadelo na primeira oscilação dos mercados. O elogio do “regresso à normalidade” por Centeno é, por isso, uma forma de endossar uma política que o governo português repetiu até à exaustão que achava errada. “A Grécia salvou-se da troika”, festeja um editorialista em socorro de Centeno, e tudo soa a normalização do fracasso da austeridade.

Ora, é precisamente porque a mensagem é também para português ver que ganha tanta importância a forma como os partidos e os comentadores interpretaram Centeno. Creio que há três categorias de respostas essenciais.

A direita aferrou-se ao assunto. Argumento: o ministro é contraditório, apoia na Grécia o que diz rejeitar em Portugal. Tudo certo. Mas este argumento é um berbicacho para o CDS e o PSD. Primeiro, porque o que criticam a Centeno não é o que faz, mas é não dizer o que faz, porque no seu sucesso só estaria a completar o que a direita iniciou, essa austeridade que é o caminho da virtude. Ora, é coisa de meninos atacar um governo por fazer o que o próprio crítico entende estar certo. Na questão grega, outra vez a mesma efervescência: “duas caras”, diz Miguel Morgado, “duas caras”, protesta com originalidade João Almeida. Mas de que cara é que gostam e qual odeiam? A austeridade portuguesa foi ótima, a grega mais exagerada, dizem, mas Centeno é continuador de Vítor Gaspar e por isso é dos nossos, logo detestamo-lo. Que haja alguém nesta santíssima direita que ache que esta conversa move o eleitorado é um sinal fatal de perda de sentido da realidade. Morgado e Almeida, que fizeram o turno do comentário estival, não querem saber e aproveitam todas as oportunidades para lembrar ao milhão de eleitores que lhes fugiram em 2015 que estão contentíssimos com a política que levou Portugal a agravar a recessão. Tudo previsível, portanto.

Na esquerda, alguma surpresa. O PCP fez o comunicado do costume a desconversar, o problema é a União Europeia. E é, mas o problema é também quando não se discute o problema. O Bloco preferiu dizer que a tese implícita de Centeno, o sucesso do programa grego, é “ridícula”. Também poderá ser, se não for trágica. Mais, seria “insultuosa para os gregos e esclarecedora para os portugueses”. Será assim tanto? Em todo o caso, faltou a pedagogia e o debate claro. O discurso de Centeno mereceria outras perguntas: se este é o “regresso à normalidade”, se é assim que a “economia é reformada e modernizada”, então vale mesmo o corte nos salários e pensões? E a privatização dos portos e aeroportos? Porque essas são as questões que importam sempre que há uma crise e, isso sim, serve para Portugal, é uma “lição”.

Finalmente, a resposta mais importante de todas veio do PS, precisamente do seu anterior porta-voz, João Galamba, no mais duro dos comentários. Disse-se que foi voz única, mas o silêncio deve ser medido não tanto por não ter havido outras críticas escritas, mas muito mais por não ter havido nenhum apoio significativo que saísse à liça pelo presidente do Eurogrupo. Ninguém disse uma palavra a favor de Centeno. Silêncio sepulcral. Não sei se por terem os seus camaradas considerado que o vídeo seria um mero “pecadilho” de vaidade, e isso é comércio ligeiro, ou se por embaraço, afinal não foi nada disto que disseram na campanha eleitoral.

Mas há nestes debates uma revelação. Há pelos vistos quem tema o peso determinante da aliança Centeno-Santos Silva no governo, e que sinta que, deste modo, a política vai sendo conduzida por atoardas cínicas de um ministro anónimo nos jornais, mais uma austeridade que se sente irracional (atrasar os concursos de médicos especialistas para poupar uns tostões ou o ministro das Finanças ir ao parlamento responder na comissão de saúde, deixar degradar o material ferroviário, ou atrasar investimentos que vão ficar mais caros depois, por exemplo). Ao elogiar a troika na Grécia, o ministro, que obviamente se prepara para voos internacionais – e por isso o seu vídeo é uma promoção de carreira – está também a dizer que, afinal, quando a economia aperta a receita tem que ser de sempre. E é isso mesmo que se deve discutir com clareza até que a experiência e as ideias configurem uma alternativa sólida a essa austeridade, que é a máquina de destruição. Assim, Centeno fez um favor à esquerda portuguesa, apontando-lhe ainda não ter a preparação suficiente para uma economia competente.

Entretanto, o ministro faria bem em notar que Kalimera, a palavra com que inicia a sua alocução, tem um sentido diferente em grego e na sua transliteração em português.