RUDY GIULIANI
Sarcasmo, pasmo e preocupação: uma discussão sobre a verdade que não é verdade
“Fake news”, factos alternativos e pós-verdade são conceitos a que o mundo se habituou desde que Trump entrou na Casa Branca. O seu advogado Rudy Giuliani acaba de inaugurar um outro: “verdade não é verdade”. As consequências deste tipo de discurso são “potencialmente devastadoras”
Texto Hélder Gomes
“‘Verdade não é verdade’ entra para o Hall of Fame de Trump, superando mesmo os ‘factos alternativos’ e o ‘lembrem-se: o que estão a ver e a ouvir não é o que está a acontecer’”, sentencia ao Expresso o professor Laurence H. Tribe, que leciona Direito Constitucional na Harvard Law School. As reações à declaração de Rudy Giuliani, advogado do presidente dos EUA, proferida este domingo na televisão têm sido muitas e chegam temperadas por sarcasmo, estupor e preocupação.
Entrevistado pelo jornalista Chuck Todd no programa “Meet the Press” da NBC, Giuliani voltou a atacar a credibilidade do conselheiro especial Robert Mueller, que investiga há mais de um ano a alegada interferência russa nas eleições de 2016. O ex-presidente da Câmara de Nova Iorque, que em abril passou a integrar a equipa de advogados de Trump, disse que não tinha qualquer pressa em ver o seu cliente a falar com Mueller.
“Não me vou apressar a pôr [Trump] a testemunhar para ele cair na armadilha do perjúrio. Quando me diz que ele deve testemunhar porque vai dizer a verdade e não se devia preocupar, bom, isso é tonto porque é a versão de alguém da verdade – não é a verdade”, disse Giuliani. Incrédulo, o jornalista interrompeu-o para corrigir: “verdade é verdade”. “Não, não é. Verdade não é verdade”, retorquiu Giuliani, deixando Todd entre o riso e a perplexidade.
Trump já manifestou interesse em falar com a equipa de Mueller, tendo sido contudo alertado pelo seu advogado de que poderia ser apanhado numa “armadilha de perjúrio”, ou seja, de juramento falso. Giuliani tem lembrado repetidamente que o conselheiro especial pode acusar Trump de mentir sob juramento se negar ter tido uma conversa, em fevereiro do ano passado, com o então diretor do FBI James Comey sobre o antigo assessor de segurança nacional Michael Flynn.
UM “RATO” NO PÂNTANO
“Trump diz: ‘Eu não lhe disse’. E o outro diz que ele disse isso. Qual é a verdade?”, interrogou-se Giuliani. Comey já reagiu, escrevendo no Twitter: “A verdade existe e a verdade é importante. A verdade sempre foi a pedra de toque do sistema de justiça e da vida política do nosso país. As pessoas que mentem são responsabilizadas. Se estamos desligados da verdade, o nosso sistema de justiça não pode funcionar e uma sociedade baseada no Estado de Direito dissolve-se”.
Depois da ter dito o já famoso “verdade não é verdade”, as imagens jocosas sobre Giuliani estão a replicar-se no ciberespaço – mas também os comentários escritos. O antigo campeão mundial de xadrez e atual ativista político Garry Kasparov escreveu no Twitter: “Destruir o conceito de verdade objetiva é um princípio geral para autocratas e uma estratégia de defesa legal. Trump precisa de ambos”. Já o escritor de ficção científica Stephen King descreveu Giuliani como um “rato” que cresce no pântano que Trump prometeu drenar. E o democrata Adam Schiff, membro da Câmara dos Representantes dos EUA, disse: “Giuliani acrescentou [algo] à liturgia de Orwell: guerra é paz. Escravidão é liberdade. Ignorância é força. Verdade não é verdade”. Os três primeiros slogans fazem parte do romance distópico “1984”, de George Orwell.
TRUMP E ORWELL
Esta não é a primeira vez que na era de Trump são mencionados o escritor inglês e o seu emblemático livro sobre uma sociedade subjugada a um estado permanente de guerra, vigilância governamental e propaganda. Em julho, o presidente dos EUA voltou a atacar os media durante um discurso numa convenção nacional de veteranos de guerra, advertindo que “o que estão a ver e a ouvir não é o que está a acontecer”. No livro de Orwell pode ler-se: “O partido dizia às pessoas para rejeitarem a evidência dos seus olhos e dos seus ouvidos.”
“Giuliani está apenas a dar continuidade à narrativa da administração Trump de que só se pode confiar neles para se ter notícias precisas. Das repetidas afirmações de Trump de que os media tradicionais dão ‘notícias falsas’ à declaração da [conselheira presidencial] Kellyanne Conway de que as mentiras noticiadas de membros da administração são ‘factos alternativos’, à afirmação de Trump de que o que vemos não é o que está a acontecer e às recentes citações de Giuliani, a administração tem consistentemente executado esta narrativa da pós-verdade desde o dia da tomada de posse”, avalia o escritor e radialista Craig Rozniecki ao Expresso.
A viver em Columbus, no estado norte-americano do Ohio, Rozniecki avisa que “as consequências são cumulativas e potencialmente devastadoras, uma vez que a administração conseguiu convencer, até certo ponto, uma percentagem significativa da população de que não se pode confiar nos meios de comunicação respeitáveis e de longa data”. “Para estas pessoas, quem verifica os factos é tendencioso, teorias da conspiração desmascaradas são vistas como plausíveis e os meios de comunicação mais confiáveis nada mais são do que máquinas de propaganda”, acrescenta. “A continuar esta tendência”, para a qual Giuliani acaba de contribuir de forma decisiva, “assusta-me pensar no que constituirá no futuro a ‘verdade’ para os autodenominados republicanos”, remata Rozniecki.