Bernardo Ferrão

Andamos nisto

Bernardo Ferrão

A herança de Costa e a lengalenga do Governo anterior

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Não sei se a Bélgica é ou não um bom exemplo no transporte ferroviário, mas trago-o para estas linhas porque foi o último país estrangeiro onde andei de comboio. E que qualidade! Não estou a falar de luxo, apenas do básico: pontualidade, carruagens limpas, velocidade, segurança, estações decentes e, já agora, comboios propriamente ditos, que é coisa que vai faltando por cá. Os problemas na CP tornaram-se rotina no noticiário nacional pelos piores motivos. O ministro Pedro Marques vai-nos garantindo que as soluções e os milhões estão a caminho, mas do Norte ao Algarve a falta de investimento é gritante e continuada. As repetidas promessas do Governo já não chegam.

Sem qualquer ironia, admira-me que a rutura na ferrovia aconteça quando há uma frente de esquerda nos comandos do país. A mesma frente que tanto se preocupou com o Estado e em reverter a privatização da TAP – que pouco ou nada tem respeitado os passageiros com repetidos overbooking e cancelamentos constantes – mas que parece ter abandonado por completo a CP. O “Público” escrevia há dias que o concurso público para comprar material circulante ainda nem tem caderno de encargos e a empresa, como está a ficar sem comboios, assegura cada vez mais serviços com… autocarros. Esta semana soubemos também que o primeiro Alfa Pendular da manhã deixou de existir. Tudo isto acontece quando a CP, altamente deficitária, regista um aumento da procura e das receitas de tráfego. Ou seja, se houvesse mais comboios, a empresa teria melhores resultados.

A idade média da frota é de 55 anos, na Bélgica anda pelos 22. O presidente da CP lembrava no Parlamento que há 20 anos não se investe na modernização do material circulante. Com comboios tão desgastados, a manutenção assume um papel fundamental, a reparação é permanente mas o dinheiro também não chega às oficinas. A EMEF, a única empresa de engenharia ferroviária em Portugal, que está presente ao longo de toda a linha, precisa de mão de obra qualificada. Com a frota a cair aos pedaços – não estou a exagerar, ouçam os relatos dos utentes – e com as oficinas sem pessoal, o serviço público já pouco tem de serviço e de público. Se a isto acrescentarmos os preços das viagens - algumas podem custar mais do que um bilhete numa low cost para uma cidade europeia -, pergunto: como pode o país que paga impostos não se indignar? Pode o Estado continuar a falhar assim?

A rutura na CP fará parte da herança que o PS deixa a si próprio

Todos sabemos o peso de Mário Centeno nas escolhas e nos cortes do orçamento. Se com Alberto Campos Fernandes o braço de ferro foi público e estava em causa o sector da Saúde, no caso da ferrovia está bem à vista quem fala mais alto no Conselho de Ministros. No entanto, não podemos deixar de questionar o mandato do ministro Pedro Marques. É ele que tutela os transportes e é também ele quem tem prometido milhões, pacotes e programas, mais comboios, linhas e troços renovados. Há um ano, depois das tragédias dos fogos, o Governo, no seu mea culpa, foi célere a encontrar uma narrativa. Na altura, disse-se que o país tinha de se virar mais para o interior, mas este desinvestimento, ou este esquecimento, é o pior sinal que se dá a esse interior.

António Costa e os seus parceiros gostam de estar sempre a atirar as culpas para o passado. É óbvio que o problema da ferrovia tem décadas mas o PS, apoiado pelas esquerdas, já está no poder há mais de três anos e, sozinho, foi o partido que mais tempo governou nas últimas duas décadas. No período de ajustamento, o travão no investimento teve razões óbvias e acrescidas e mesmo assim as queixas eram menos carregadas. Chegamos ao limite. A rutura na CP fará parte da herança que o PS deixa a si próprio. Se ganhar 2019, como se prevê, Costa pode continuar com a lengalenga da culpa do Governo anterior. E verá que não se vai enganar.