Tiago Miranda *

Crónica

Tiago Miranda *

Maternidade Alfredo da Costa, a fábrica de parir e o acompanhante que não é de luxo

Durante uma semana tive todas as dúvidas de um jornalista que precisa de expor a sua vida privada para passar informação, hoje tenho a certeza que seria irresponsável se não o fizesse.

Esta história faz-me lembrar a ASAE, que seria capaz de fechar um restaurante que tivesse comida absolutamente deliciosa e um chef com cinco estrelas Michelin mas ratazanas de meio metro a passear na cozinha.

Há anos que existe a crença generalizada de a MAC ser a melhor maternidade do país, que tem médicos fabulosos mas péssimas condições, como se os profissionais de saúde não tivessem nada que ver com as condições em que os seus doentes são tratados. Na verdade, acho que Portugal tem profissionais de saúde brilhantes no que toca a ciência médica mas não tanto em tudo o que envolva ciências sociais, económicas e humanas.

Mas vamos por partes.

Acabei de passar uma semana enfiado na MAC pela melhor razão do mundo, o nascimento da minha filha. Os médicos estão de parabéns porque ela está ótima de saúde e estou-lhes eternamente agradecido por isso, por outro lado, ao mesmo nível ou superior, também eu e a mãe estamos de parabéns!

Não só tivemos coragem de ter uma filha num país com poucas condições para ter filhos, como superámos a maior prova de resistência das nossas vidas - passar uma semana na Maternidade Alfredo da Costa.

A nossa aventura começa num quarto na zona das urgências da Maternidade. Para se perceber minimamente o que se vai passar, entenda-se por “quarto” uma cama de parto e uma cadeira de ferro sem qualquer revestimento (género as de esplanada ou as cadeiras de tortura num daqueles filmes de Hollywood).

Neste quarto, eu e a Ana passaremos as últimas 24 horas antes do nascimento da Alice.

O ACOMPANHANTE QUE NÃO É DE LUXO E O MACHISMO QUE COMEÇA AQUI

A primeira coisa de que qualquer futuro pai se apercebe quando entra na Maternidade é que não é “pai” - o seu cognome será, a partir desse momento e até voltar a sair com o seu filho, “acompanhante”. Será chamado “acompanhante” pelos seguranças, pelos auxiliares de saúde, pelas enfermeiras, por vezes pelos médicos e sempre em voz alta pelo altifalante de chamada.

O problema de ser o acompanhante e nunca o pai é um problema de princípio. O acompanhante é o simpático que está ali por bondade ou porque lhe apetece mas podia não estar ou o chato que está ali a mais e que devia não estar. O pai ser percecionado desta forma é achar-se que aquele é o lugar da mãe/mulher e não necessariamente dele, sendo remetido para a categoria de acessório. Isto é das formas mais elementares de Machismo. O mais estranho é que a Maternidade é composta maioritariamente por trabalhadores femininos e isto parece ser-lhes indiferente e vai refletir-se nos momentos seguintes.

Mas por que raio insistem em usar uma expressão como “parir”, que tem 99% de péssimas conotações e derivações, e não dizem simplesmente “ter um filho” ou “dar à luz”?

No quarto onde estávamos, ao acompanhante é reservada a cadeira de ferro que durante quase 24 horas serviu para descansar ou dormir e que tinha de ser partilhada com a arrastadeira. Nestes momentos ou quando o corpo já não aguentava, sentava-me simplesmente no chão. A cadeira era também reservada à arrastadeira, porque de cada vez que a mãe tinha de ir à casa de banho e não havia auxiliares disponíveis para a levar (só podíamos sair do quarto acompanhados), era o único sítio onde se conseguia apoiar a sanita medieval.

Durante essas 24 horas, ao acompanhante não é oferecida qualquer refeição ou água - sempre que tinha sede ou fome tinha de sair do quarto. O que representava outro problema e mais à frente voltarei ao assunto.

Apesar de desde o primeiro dia que fomos à MAC termos preenchido a declaração de como achávamos importante e tínhamos a intenção de o pai poder assistir ao parto, a resposta foi sempre a mesma, que dependia da equipa de saúde que fosse realizar o parto. Como até ao momento do parto atravessámos mais de três equipas e nunca se sabia qual delas ia realizar a cesariana, tínhamos de passar a vida a perguntar caridosamente se eu podia assistir ao parto ou não.

Quando chegou a altura do momento mais importante das nossas vidas, tivemos o azar de apanhar uma equipa pouco clara quanto à vontade de deixarem o acompanhante assistir a um dos momentos mais importantes da sua vida.

Não me deixaram estar presente no momento em que trouxeram a Alice ao mundo mas levaram-me para o bloco operatório quando estavam a limpar e a fechar a Ana. Fiquei algo confuso: afinal, a questão nunca foi uma dúvida sobre o nível de sensibilidade do acompanhante, porque cheguei no pior momento possível, quando a Ana estava com a barriga toda aberta, mas foi realmente uma questão de conforto da equipa médica e para conforto deles roubaram-me a possibilidade de assistir a um dos momentos mais gloriosos da vida humana, ainda por cima, neste caso, também gerada por mim.

Assim, suspeito que ouvi o primeiro choro da minha filha enquanto estava sentado num banco mais que deprimente, a cerca de dez metros da sala de operações. Suspeito porque sendo uma maternidade, como devem imaginar, de vez em quando ouvia-se outros bebés a chorar, mas quero acreditar que aquele choro que nunca me vai sair da cabeça é de facto o da minha filha e não de outro.

A MÃE QUE FICOU PRESA NA MÁQUINA DE PARIR

Antes de voltarmos ao bloco de partos gostava de voltar à semântica e nomenclatura utilizadas. Todos nós sabemos que “parir” é o nome técnico dado ao ato de dar à luz e todos sabemos que os profissionais de saúde adoram nomes técnicos como se isso lhes atribuísse mais um grau académico por cada vez que usam a palavra. Mas por que raio insistem em usar uma expressão como “parir”, que tem 99% de péssimas conotações e derivações, e não dizem simplesmente “ter um filho” ou “dar à luz”? Serão eles paridos pela Ordem dos Médicos se o fizerem? É que para o pai e para uma mãe é ligeiramente diferente dizerem-lhes que está na hora de “parir um bebé” ou “está na hora de trazermos esse bebé ao mundo” (por exemplo). Sim, é uma questão de sensibilidades, mas não é isso que nos torna a todos humanos?

Como qualquer pessoa normal entenderá, para quem nunca foi operado ou nunca teve um filho, no momento em que espera pela primeira vez por uma cesariana, os nervos estão tão à flor da pele como se de uma operação ao cérebro se tratasse. No nosso caso essa espera durou quase 24 horas enfiados no tal quarto de onde só podíamos sair acompanhados.

O problema que referi anteriormente sobre o acompanhante se ausentar do quarto é que cada vez que isso acontece é proibido a mãe ficar com qualquer pertence, incluindo telemóvel. Como podem imaginar, a Ana, já nervosa o suficiente com tudo, a última coisa que queria era ficar sozinha num quarto, numa ala escura, apenas com paredes brancas sem qualquer contacto com o mundo exterior. Assim, de cada vez que me ausentava, tínhamos de esconder o telemóvel das funcionárias.

A lógica parece ser que se a mãe tiver de ir de repente para o bloco operatório ninguém no hospital consegue ou está para garantir a guarda dos pertences das pessoas. Nisto, fomos apanhados uma vez por uma funcionária, disse que nos deixava ficar com o telemóvel mas pediu-nos por tudo para não contarmos a ninguém.

Esta manhã achei curioso ter encontrado um artigo sobre um recluso da prisão nas Caldas da Rainha que tinha colocado o Estado em tribunal porque na camarata onde estava só tinha 2,2 metros quadrados de espaço para si. Na MAC, a mãe, o seu bebé e o acompanhante (nas horas de visita) têm direito a três metros quadrados

No quarto, com um calor infernal, várias vezes com jeitinho salientámos o fator temperatura às funcionárias e várias vezes as funcionárias comentaram o imenso calor que se sentia no quarto e abriam ligeiramente a janela (os turistas do hotel Sheraton devem adorar a vista), mas claro que nem uma brisa passava, até que 18 horas depois dentro do caldeirão da sopa uma simpática assistente vai buscar o comando do ar condicionado, liga a máquina milagrosa e volta a refundir o comando algures numa zona segura do hospital.

Depois de 24 horas no quarto das quatro paredes e de uma cesariana, assistimos sem perceber muito bem à médica a discutir com a enfermeira quantas compressas se tinha usado, se 14 ou 15. A Ana foi transferida para a enfermaria, onde sabia à partida que seria obrigada a lá ficar no mínimo durante 72 horas para vigilância. Mal sabíamos que afinal a Ana ficaria lá 5 dias, ou seja 120 horas, ou melhor 7200 minutos. Isto porque quando estamos presos num sítio com um metro e meio por dois contamos todos os minutos. Este é o espaço atribuído a cada grávida no quarto 105 da MAC. Três metros quadrados para a mãe, para o bebé, a pequena mala da mãe, a pequena mala do bebé, as fraldas e afins do bebé e ainda o berço. Isto sem poder sair dali, apanhar ar, nada! Um edifício com 2000 metros quadrados e não é possível haver um local onde as mães, que estão centenas de horas ali presas, possam ver a luz do dia.

Esta manhã achei curioso ter encontrado um artigo de 2016 sobre um recluso da prisão nas Caldas da Rainha que tinha colocado o Estado em tribunal porque na camarata onde estava só tinha 2,2 metros quadrados de espaço para si. O estabelecimento prisional argumentava que não era verdade, que cumpria a lei e que o recluso teria os cerca de 5 metros quadrados exigidos por lei. Ora, na MAC, a mãe, o seu bebé e o acompanhante (nas horas de visita) têm direito aos tais três metros quadrados.

Durante os dias na enfermaria, os bebés não podem tomar banho porque não existem banheiras. Por sua vez, as mães também praticamente não tomam banho porque os chuveiros têm pouca ou nenhumas condições.

Nas camaratas, quando os dois televisores estão ligados, três pessoas conseguem distrair-se mais ou menos com a telenovela do dia, as outras três quase que o conseguem fazer, como nunca ninguém se deu ao trabalho de sintonizar a televisão - a qualidade da imagem é desafiante.

Não é preciso ser médico psicólogo para perceber que, ao terceiro dia, qualquer mãe se acha a pior pessoa do mundo, incapaz de cuidar de qualquer criança - afinal de contas, foi colocada de castigo e presa por o bebé que deu à luz ainda não ter condições para sair da maternidade.

CONCLUSÃO PARIDA

Respeito imenso todas as pessoas que há uns anos lutaram para se manter a maternidade aberta no centro de Lisboa e respeito imenso todos os profissionais que nela trabalham, que têm a fama de ser os melhores que o país tem para oferecer, mas depois de uma semana na Maternidade acho que até o Alfredo da Costa concordaria que é preciso encerrá-la imediatamente ou renová-la com a máxima urgência. Como está, é mais do que certo que não tem qualquer condição para existir. Isto por mais que afete os saudosismos ou os senhores profissionais de saúde que nela trabalham.

Ninguém entraria num avião sem bancos e que tivesse um motor deficiente mesmo que fosse garantido que o piloto era o melhor do mundo.

Nos hospitais não se trata apenas doenças, trata-se doentes e trata-se cuidadores. Estamos no século XXI e já não arrancamos dentes com sacas de batatas.

Também uma maternidade não se trata apenas de um sítio onde se arrancam bebés de dentro de uma barriga e se chama a isso sucesso. Trata-se de um bebé, de uma mãe e um pai que tiveram a coragem de se lançar no que lhes prometeram ser uma maravilhosa aventura.

P.S. Só para acabar e sem querer parecer picuinhas, os responsáveis pela MAC terão consciência que têm portas de emergência com indicação de saída de emergência trancadas a cadeado (por exemplo a P4)? Acho que não preciso de apelar ao seu bom senso para as consequências no caso de haver algum acidente grave num edifício com 85 anos, centenas de pessoas e dezenas de bebés no seu interior.

A fotografia em baixo foi o banco onde ouvi pela primeira vez o choro da minha filha.

* fotojornalista do Expresso