RELATÓRIO
Peritos concluem que havia capacidade para prevenir fogos trágicos de outubro
Comissão técnica independente entregou relatório esta terça-feira e é clara: era possível “prevenir o que era esperado”. Morreram 48 pessoas
Texto Carla Tomás Fotos Luís Barra
A passagem do furacão Ophelia ao largo de Portugal “foi apenas o gatilho” do que veio a revelar-se serem os piores incêndios florestais de sempre em toda a Europa tendo em conta a área ardida num curto espaço de tempo e os maiores registados no outono no continente europeu. Esta é uma das conclusões do relatório sobre os incêndios que ocorreram em Portugal continental entre 14 e 16 de outubro de 2017, entregue esta terça-feira na Assembleia da República. Outra conclusão revela que havia capacidade para antecipar o combate aos incêndios e que isso não foi feito: “Perante as condições meteorológicas de outubro poderia (deveria) ter-se antecipado o aumento do número de ignições e, por isso, poderia ter-se atuado, com medidas robustas de pré-posicionamento e de pré-supressão, de forma a prevenir o que era esperado”. Recorde-se que com o fim da fase Charlie, a 30 de setembro, havia uma redução significativa de meios aéreos e terrestres no terreno, apesar dos avisos de risco agravado de incêndio emitidos pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
Em três dias as chamas consumiram 241mil hectares de território, incluindo matos, floresta, casas, fábricas e áreas agrícolas, sobretudo no Centro e Norte do país, e tiraram a vida a 48 pessoas. A maioria das vítimas mortais foi apanhada pelo fogo entre o final da tarde de domingo, 15 de outubro (17h00), e a madrugada de segunda-feira, 16 de outubro (5h00), refere o documento.
Naquele trágico domingo, “após a passagem do furacão Ofélia formou-se uma tempestade de fogo” que o especialista em incêndios florestais Paulo Fernandes – um dos 12 peritos da comissão técnica independente (CTI) – descreve ao Expresso como “um fogo tridimensional que formou uma coluna de 9-10 quilómetros de altura capaz de gerar ventos fortíssimos”.
Esta “tempestade de fogo” – com a formação de dois “down drafts”, fenómeno semelhante ao que ocorreu em Pedrógão Grande – encontrou combustível vasto para se alimentar e nada que a travasse. O relatório descreve a existência de áreas de coberto florestal contínuo (pinhal e eucaliptal) que não ardiam há mais de uma década e indica que a severidade do fogo só diminuiu em zonas de eucaliptal onde fora feita gestão de combustíveis.
“Não estamos preparados para esta complexidade de incêndios”
Em três dias de outubro ardeu cerca de metade dos perto de meio milhão de hectares consumidos pelas chamas em Portugal em todo o ano de 2017. Mas este não é só o pior ano de sempre em Portugal em termos de área ardida, é também o pior de sempre em toda a Europa “em termos de área ardida por unidade de tempo”, explica Paulo Fernandes. E com base nesta equação, estes foram também os priores incêndios de 2017 no mundo, tendo registado “uma média de 10 mil hectares ardidos por
hora”.
“Neste tipo de incêndios, as condições são tão severas que a janela de oportunidade para o combate são muito curtas: ou se apaga em 5-15 minutos, nestes casos com meios aéreos e terrestres, ou perde-se-lhe o controlo”, sublinha Paulo Fernandes. O investigador do Centro de Ecologia Aplicada da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro lembra que a maioria do dispositivo de combate disponível estava concentrado no incêndio da Lousã no dia 15 de outubro. Ou seja, vem-se a provar o que então se disse: houve falta de meios para atuar em tempo útil.
Nesse sentido, e também a propósito dos avisos emitidos pelo IPMA que antecipavam risco agravado de incêndio, Paulo Fernandes sublinha a importância de uma das sugestões contidas no relatório: “Ter meios aéreos a fazer vigilância em dias com potenciais condições meteorológicas para incêndios”, como acontece em França. “As coisas podiam ter corrido melhor se o modelo permitisse juntar o conhecimento científico cruzando as informações meteorológicas, de modo a antever o que vinha ali e assim reforçar o patrulhamento no terreno”, acrescenta o perito.
“Não estamos preparados para esta complexidade de incêndios, com uma tão grande acumulação de energia”, reforça António Salgueiro, outro dos peritos da CTI. O ex-responsável pelos extintos Grupos de Análise e Uso do Fogo (GAUF) lembra que se quer corrigir essa falta de preparação com a criação da Agência Integrada para a Gestão de Incêndios Rurais (AGIF) e com a aposta “numa maior formação e informação das pessoas”.
O especialista sublinha que “não é possível eliminar o risco de incêndios em Portugal”, que tendem a ser cada vez mais e mais intensos num contexto de alterações climáticas. Contudo, diz, “é possível preparar as comunidades locais e as forças no terreno para preveni-los e enfrentá-los”.
É que 500 ignições num dia é o expectável face a condições meteorológicas como as que se viveram a 15 de outubro.
Limpeza em redor de casas e aldeias não chega
Os peritos da CTI chamam a atenção para o facto de a limpeza em redor das casas não ser “a solução” para o problema dos incêndios em Portugal. O relatório salienta que é na prevenção em várias frentes, entre as quais a gestão de combustíveis nas vastas áreas contínuas de pinhal e eucaliptal, que está parte da mitigação do problema.
Ao analisarem cerca de mil edificações atingidas pelo fogo, perceberam que na sua maioria estavam rodeadas por campos agrícolas e que foram atingidas por projeções de folhas ou outro material incandescente transportadas pelo vento, nalguns casos ao longo de mais de um quilómetro. Ou seja, o estado da vegetação nos 50 ou nos 100 metros em redor das edificações revelou-se “pouco importante”, asseguram os peritos.
Projetos como o das aldeias resilientes ou a articulação dos planos industriais de defesa contra incêndios com os espaços comuns revelam-se mais significativos. O levantamento feito indica que o prejuízo estimado para as empresas/indústrias afetadas ultrapassa os 250 milhões de euros.
Reacendimentos são o “calcanhar de Aquiles”
Os três maiores incêndios de outubro tiveram origens distintas: o da Lousã foi provocado pela queda de uma árvore seca sobre uma linha da EDP; o de Quiaios foi fogo posto com intenção dolosa; e o da mata de Leiria teve origem em dois reacendimentos. Aliás, os reacendimentos foram responsáveis por mais de 20% dos incêndios de outubro, revela o relatório da CTI.
“Os reacendimentos são o nosso calcanhar de Aquiles. São uma das falha no nossos sistema de combate”, sublinha Paulo Fernandes. Devido a rescaldos mal feitos, fogos dados por extintos mas que continuaram a lavrar no subsolo acabaram reativados pelos ventos, pela secura dos matos e por projeções de folhas ou pedaços de casca de árvores que voaram longas distâncias.