O POEMA ENSINA A CAIR
AS ARMAS DE DESTRUIÇÃO MACIA DO POETA-CIRURGIÃO
João Luís Barreto Guimarães não sai de casa sem caneta, bloco e livros de poesia no bolso: "sou muito mais um poeta que opera do que um cirurgião que escreve"
TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO
“vens
pela dor
acomodando.”
Escreve desde a adolescência e é, provavelmente, desde essa idade que recusa a poesia dos "inhos". Acredita que “quem escreve sobre o quotidiano, a casa, a família e os amigos, para ter alguma possibilidade de sucesso na escrita de uma poesia que subsista, tem de se defender dos sentimentos(inhos), das pétalas e das flores.” Desenvolve a ideia numa frase: “a única flor que me interessa é a flor murcha.”
Os primeiros escritos de João Luís Barreto Guimarães surgem na mesma altura em que começou a experimentar muitas outras formas de expressão criativa, “tentei o desenho - a banda desenhada e o cartoon, a música - o piano, a flauta e a guitarra elétrica, a pintura, e a escrita”, e foi a escrita que acabou por persistir, na forma poética: “na ficção, o que falhava era o fôlego, até fazia uns bons primeiros capítulos mas depois entediava-me da história, queria uma coisa mais rápida. Por isso é que me entendo com a crónica e, provavelmente, também me entenderia com o conto.”
Enviou esses primeiros poemas para o antigo suplemento do Diário de Notícias, DN Jovem, e foi assim que se viu publicado pela primeira vez, e foi também dessa forma que se iniciou em leituras de autores que até então desconhecia: “o Manuel Dias fazia comentários ao que enviávamos e sugeria leituras. A mim dizia-me para ler o João Miguel Fernandes Jorge e o Joaquim Manuel Magalhães.”
Já no 12º ano do liceu começa a escrever sonetos que seriam editados num primeiro livro e nos dois seguintes, altura em que, terminado o curso de medicina e enquanto decidia a especialidade, parou uns meses: “parei para decidir o que queria fazer e tive uma experiência semanal num café que fica na Avenida da Boavista, e escrevi o Lugares Comuns.” Um livro com “52 poemas em prosa”, que seria publicado no ano 2000, já no final da especialidade em cirurgia plástica e reconstrutiva.
Para o que é enquanto poeta e a forma como vê a poesia contribuiu muito o estágio de cirurgia reconstrutiva da mama em Nova Iorque, no sexto ano da especialidade, porque passou muito tempo em livrarias a ler e comprar poetas anglo-saxónicos: “durante um mês inteiro passei uma hora em diferentes livrarias de Nova Iorque, praticamente 4 das 5 tardes de cada semana, a ler a ler a ler, e a comprar. Inclusive, fui obrigado a comprar uma segunda mala de viagem para poder regressar a Portugal e trazer todos os livros que comprei.” Explica que o mais importante que retirou dessas leituras foi a ideia da “concisão do poema, da forma de fazer o corte do verso, ou seja a cesura, da criação de expectativa no leitor, no jogo de engano do que pode ser o verso seguinte.”
O quinto livro é influenciado por estas leituras mas também o que lhe acontece a seguir: “de repente, desinteresso-me, tirando uma ou outra exceção, de pertencer, de ser mais um poeta português e nacional que dialoga com a sua própria tradição interna e passo a ser um poeta que fundamentalmente dialoga com muitos poetas europeus e anglo-saxónicos.”
Começa então a comprar antologias de autores europeus e assume-os como referências para o que escreve a seguir e até hoje, “uma escrita cosmopolita, urbana e aberta” que encontraremos também no próximo livro, “Sentido Único” que “aprofunda esta ideia de Europa e esta ideia de transnacionalidade. É uma poesia pouco umbilical do ponto de vista português, pouco bairrista.”
Não guarda muitos poemas nas gavetas de casa, “só os escrevo quando já os tenho praticamente desenhados na cabeça”, e pode escrever em qualquer altura porque se faz acompanhar todos os dias de 3 canetas, um bloco, e alguns livros de poesia: “eu posso até passar um dia sem ler poesia ou sem escrever mas tenho que ter a sensação que os tenho como se fossem um estetoscópio.” Sai de casa com estes objetos como quem sai com o corpo: “também todos os dias ando com as minhas mãos e sei onde estão guardadas as lâminas para poder operar.”
Afirma-se atualmente “muito mais um poeta que opera do que um cirurgião que escreve” e encara a poesia como “um exercício mais racional do que sentimental”. Será por essa razão que não escreve nos momentos agudos, mas nos seguintes: “nunca escrevo a quente mas escrevo dentro do momento sub agudo e ainda escrevo dentro do momento crónico, mas quando escrevo tento criar distância”. Não escreve “verborreicamente mas economicamente”, e usa a ironia como “arma linguística”: “é fundamental o tom da ironia porque é o único tom que permite escrever com alguma distância sobre temas tão próximos. O humor e a ironia tornam os poemas mais duros e ao serem mais duros tornam-se mais próximos da experiência universal.”
Diz que a poesia lhe interessa muito mas que a vida lhe interessa ainda mais e que, na literatura e na medicina, talvez tenha demorado algum tempo a obter reconhecimento e até algumas vitórias importantes, mas foi essa a escolha que fez: “normalmente sou vítima dos que utilizam o poder de uma forma rápida e virtualmente assertiva. Eu utilizo armas de destruição macia.”
A poesia serve para quê?
Para muito menos do que um iphone.
Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
“Sei os teus seios / Sei-os de cor.” (Alexandre O’Neill)
Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Polaco.
Um bom poema é...
Um que nos bate, nos agride.
O que o comove?
Modigliani, o meu gato.
Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
Nenhum. Porque “A verdade é que isto [já] não vai com poemas.” (Manuel António Pina)
Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
“Aqui jaz João Luís Barreto Guimarães, que escreveu poesia até à últ...”
Poemas João Luís Barreto Guimarães leu "Bagagem Perdida" e escolheu um poema de Wislawa Szymborska para ser lido por Raquel Marinho