CRIME À SEGUNDA
Isabel quis matar o marido com um clister de água-forte, Tomás salvou-se e ela morreu
ISABEL XAVIER CLESSE Retrato-robô
Tomás Luís Goilão, piloto de naus, sobreviveu à cruel injeção por via retal que lhe foi ministrada. A esposa “temperara” a “mezinha inofensiva” receitada pelo médico, mas falhou - Isabel, uma mulher bonita de 27 anos, tinha um amante e tentou matar o marido “por suja maneira”. Há 23 sonetos, duas elegias, duas glosas, uma carta, uma ode, um poema em décimas heptassilábicas, um romance heroico e uma silva escritos sobre este acontecimento. A série “Crime à Segunda” está de volta, com uma nova temporada sobre criminosas portuguesas. Este é o segundo caso
TEXTO ANABELA NATÁRIO ILUSTRAÇÃO JOÃO ROBERTO
Acordou-o no inicio do sono, em alvoroço, com um lenço na mão sujo de excrementos iguais aos que repousavam na almofada e convenceu-o de ter tido um volvo. Chamado o médico, este receitou o remédio caseiro que Isabel sugerira, com a ideia de dar ao marido um clister mortal. Isto ajuizaram os magistrados que a condenaram à morte. Ela negou a intenção, ele salvou-se, mas os juízes não lhe perdoaram o facto de “viver publica e escandalosamente amancebada” enquanto o esposo andava na carreira da Índia.
Tomás Luís Goilão regressara a Lisboa há um mês, após ter passado meio ano no mar, pelo menos. Chegara no principio de abril de 1771 e, desta vez, capitaneara a Nossa Senhora da Ajuda — é sabido pelo registo da visita do desembargador à nau, no dia 7, para verificação do mapa de carga. Isabel Xavier Clesse, porém, já dera o coração a outro. Encantara-se, ao que dizem os escritos da época, assim como a sentença, por um porta-bandeira do Regimento de Infantaria do Conde do Prado, que há de mudar a designação, em 1806, para infantaria nº 4.
Isabel é uma mulher bonita de 27 anos. Mora desde sempre na Calçada da Estrela. Vive “em sociedade conjugal” com o marido e nascera na freguesia das Mercês, a 20 de julho de 1743. Na sentença apenas surge o nome do pai, Eugénio Pedro, mas no registo de nascimento a mãe é Teresa Clerez. No registo de casamento dos pais, em outubro de 1739, o apelido de Teresa é Clerici, como o de seu pai João Baptista Clerici; atendendo ao som e que, até ao século XVIII, se mudam nomes e grafias a bel-prazer, justifica-se o Clesse que consta no processo de Isabel.
O porta-bandeira Januário Rebelo será mais novo do que ela e também do marido, este já talvez perto dos 40 anos, e um assíduo da calçada, uma vez que o regimento comandado pelo coronel Lourenço de Lancastre e Noronha, conde do Prado por casamento com a herdeira de 15 anos, se encontrava perto, aquartelado em Campo de Ourique. Isabel confessará que a relação era amadrinhada por uma sua tia, na residência de quem se encontravam, e que o amante “saía com toda a liberdade, de dia, e de noite” de sua casa, “dormindo nela”. E que se continuaram a ver mesmo depois da chegada do marido.
CERTIDÃO Inscrição do batismo de Isabel, nascida a 20 de julho de 1743, nos registos paroquiais da freguesia das Mercês, Concelho de Lisboa
Naquela noite de 3 de maio de 1771, Tomás Luís dirá quando depuser no inquérito que se deitou em paz e sossego, “sem se queixar ou conhecer moléstia alguma em seu corpo” e que “a sentiu ao pé de si, chamando por ele com desacordo, para que visse o seu estado, e o que lançava da sua mesma boca, mostrando-lha untada de excrementos, e parte do mesmo em um lenço, e travesseiro da mesma cama, persuadindo-o que tinha sido um volvo, e que logo mandasse chamar o cirurgião para o curar”.
José Cardim, após ouvir Isabel, decide-se por aplicar “uma mezinha de água de malvas, açúcar branco e óleo de amêndoas doces sem fogo, a qual ela mesma foi temperar”. O "tempero” foi de água-forte, ou seja, ácido nítrico que pode matar se bebido e ainda mais rapidamente se se tratar de uma lavagem, outro nome dado à época ao clister. Como escreveria Camilo Castelo Branco, quase cem anos depois (é uma história a que nunca conseguiria resistir, dados os ingredientes), Isabel “tentou matá-lo por suja maneira, senhores meus, matá-lo com uma mezinha ministrada por meio de uma seringa. É onde pode chegar a imaginação depravada!”.
Tomás Luís não seria o primeiro, nem o último, provavelmente, a morrer neste século XVIII com um clister de água-forte. Isabel e Januário, que a “voz pública” dizia ter sido seu cúmplice, desconheciam um caso célebre, que Jeanne Louise Henriette Campan contará nas suas “Memórias”, publicadas no século seguinte: a dama da rainha Maria Antonieta, nascida no ano anterior ao atentado a Luís XV por Damien, diz que esse episódio lhe marcou a infância e que soube que o mesmo que feriu o rei francês com uma faca, em 1757, confessou ter assassinado, quatro anos antes o conde La Bourdonnaye, de quem fora criado, dando-lhe um “lavement d’eau-forte”.
SENTENÇA O tribunal francês e o réu Damien, que atentou contra a vida do rei Luís XV e terá assinado um antigo patrão, conde, com um clister de água-forte, numa gravura da época ESCOLA FRANCESA, (SÉCULO XVIII) - BIBLIOTECA NACIONAL DE FRANÇA
É por estas e por outras, dirá a letrada madame Campan, que todo o cuidado é pouco com os estranhos que se metem em casa na hora da seleção. Por outro lado, depois desta revelação (Voltaire atribuíra ao escorbuto a morte do governador-geral das Mascarenhas, depois de ter passado cinco anos na cadeia por falsa acusação), La Bourdonnaye e o clister mortal começaram a ser usados como exemplo pelos autores dos textos de medicina e da arte do envenenamento. Damien não foi sentenciado à morte por este crime, mas pelo atentado ao rei, com um suplício indescritível, que os juízes portugueses quase copiaram para castigar os Távoras e os eventuais cúmplices, em 1759, quando o marquês de Pombal os acusou de quererem matar D. José I dois anos antes.
Tomás Luís começou a gritar que o matavam, mal o cirurgião lhe “lançou uma pequena porção” do clister. Cardim, que no inquérito demorará a admitir ter ministrado veneno, observando o “estrago, alteração e revolução que lhe fizera”, decidiu "sangrá-lo imediatamente” e “dar-lhe remédios refrigerantes, retirando-se de manhã do dia quatro, e deixando dito que mandassem chamar médicos, para melhor ser curado o enfermo”.
Os médicos — por estes anos, o cirurgião é quem trata e o médico quem diagnostica e receita — concluíram, dirão mais tarde, tratarem-se de sintomas de envenenamento. É dos livros. No início do século, o médico João Curvo Semedo, conhecido por inovações nos tratamentos, já publicara em 1707 as suas “Observações Médicas Doutrinais de Cem Casos Gravíssimos”, nas quais descreve um caso de envenenamento por água-forte que, por ter sido atacado a tempo, conseguiu resolver com grande quantidade de óleo de amêndoas doces sem fogo, leite de vaca e duas oitavas das suas pílulas antifebris, as quais dava aos pobres e vendia aos ricos, só em sua sua casa, para combater as falsificações feitas em seu nome nas boticas.
O óleo de amêndoas doces cru foi o que logo mandaram dar os médicos ao marido de Isabel. Segundo Semedo, “este tem duas propriedades essencialmente necessárias, e proveitosas para semelhantes casos: a primeira é rebater com a sua oleosidade toda a acrimónia [acidez] e malícia corrosiva da água-forte, e a segunda é expelir por vómito a matéria acre, venéfica [venenosa] e deletéria [insalubre], que a dita água tem para que não rompa os intestinos”.
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Não se matou o inimigo, mas ficou arruinado inteiramente, porque as tripas sentiram na alma a guerra feita nos Países Baixos
O “tempero” com água-forte foi em dose diminuta, senão a vítima teria morrido, mesmo que o seu organismo tivesse adquirido defesas face às infeções que costumavam dizimar os tripulantes das naus, já que as condições de higiene pouco se alteraram desde o início, na centúria de quinhentos, até esta altura. Foi pensando nesta possibilidade que Isabel baseara a sua defesa, mas os juízes não se convenceram: “Ainda que as tivesse padecido, e se lhe pudessem originar muito graves, das que se experimentaram na Nau, em que tinha chegado da Carreira da Índia, tudo se desvanece pelo prova de fingimento, de que a mesma Ré usou, untando-lhe a sua boca com o dito excremento e afirmando que tinha sido um volvo”.
“Não se matou o inimigo, mas ficou arruinado inteiramente, porque as tripas sentiram na alma a guerra feita nos Países Baixos”, escreveria, antes de sair a sentença, o pintor coevo Francisco Xavier Lobo, com o humor e malandrice que lhe é peculiar, numa carta ao amigo Lourenço Xavier, que, por costume, lhe pedia “notícias suas e de caminho as da corte”. Na verdade, a ruína não foi completa: o marinheiro recuperou bem e quando a mulher foi condenada à morte, a 28 de março de 1772, já se preparava para embarcar de novo, mas como primeiro piloto, e, no ano seguinte, movia uma ação contra o capitão da nau por salários em atraso.
Isabel não negará que mandou o criado comprar água-forte e justifica o pedido com a calosidade que a atormentavam. Durante a devassa, que é como quem diz a investigação, João António dissera isso mesmo, que fora “duas vezes a uma Botica, comprando por uma sessenta reis, e por outra cinquenta; movendo-o a dizer-lhe que era para curar uns calos”. Mas o criado acrescentará que, na manhã de 4 de maio, estava o patrão em agonia, viu as mãos de Isabel amareladas, o que indica o manuseamento do ácido, vulgo água-forte.
O criado, todavia, acrescentará mais: não só comprara o ácido, como “fora mandado da dita a uma botica com uma carta, em que pedia séneca para matar ratos”. O arsénico terá sido misturado nos tratamentos da manhã seguinte, nas unturas receitadas pelos médicos, das quais “resultaram varias nódoas e chagas”. E “sendo-lhe aplicados uns leites, neles lançara veneno, de que lhe foram achados dois papéis”.

Ao ser confrontada com os dois pacotes de arsénico aviados na botica de São Bento, negou que fossem seus e disse que tudo não passava de uma conjura dos pais para a matarem. Na altura, dizia-se que fora o pai, Eugénio Pedro, quem a denunciara. A poetisa Leonor de Almeida Lorena e Lencastre, na altura com 21 anos, dedica-lhe o poema “Epistola de Isabel Clesse, no tempo em que vai a morrer por um crime que não confessa, ou não tem; a seu pai que fora o seu denunciante, segundo diz a voz pública”.
Mais tarde, quando da publicação, fará uma nota: “Para não injuriar a natureza, e o nosso país, deve declarar-se que o denunciante de Isabel Clesse não foi seu pai, como correu no tempo em que foi escrita a epistola precedente. Mas para que possa de algum modo conservar-se a verosimilhança, basta saber-se que foi um homem que a tinha educado o próprio que a acusou”. Será que Isabel foi criada pelos tios e só a tia dava cobertura aos amores ilícitos? Terá o tio apanhado a carta de Januário que levou os magistrados a julgar verosímil “o trato ilícito, e que deste resultara a dita infâmia de atentar contra a vida do dito seu marido, querendo com o dito veneno da sobredita água forte, e da dita séneca achada, que a chegasse a perder, para que ficasse mais desembaraçada, para frequentar o dito seu depravado, infiel e aleivoso procedimento”?
A marquesa de Alorna era especialmente sensível ao caso, ela que foi e viu o pai preso, João de Almeida Portugal, a clamar inocência, e os avós Távora sentenciados à morte com requintes de malvadez. Quando escreveu a epistola, ainda estava detida no convento de S. Félix em Chelas, para onde o marquês de Pombal a mandou, com a mãe e as irmãs, depois de acusar a família de estar por trás do atentado ao rei José, perpetrado no local onde mandou erguer a Igreja da Memória e os seus ossos ainda se encontram.
POEMAS A marquesa de Alorna, na altura do caso com 21 anos e ainda presa num convento em Xabregas, ficou impressionada com o caso de Isabel Clesse e dedicou-lhe uma epistola
Nicolau Tolentino, mais velho dois anos do que a acusada e um dos poetas mais importantes deste século XVIII, também não ficou indiferente. Mas enquanto Leonor, para “recreio da imaginação”, “quis julgar falso o crime” (“para mim, e para a Poesia, basta-me que alguém chegasse a duvidar dele”), Nicolau não teve dúvidas de que Isabel matara o marido “com uma ajuda”, começando o soneto escrevendo: “Que novo invento é este de impiedade / Que extirpar gente vem pela traseira”.
Alcipe, como era conhecida entre os intelectuais da época, e Tolentino não foram os únicos a poetar o caso que entreteve Lisboa um ano, no mínimo. O professor universitário Francisco Topa, em “Um Caso do Século XVIII: Isabel Xavier Clesse, a parca cristaleira — poemas inéditos sobre o tema”, publicado em 2000, reuniu sobre o tema 23 sonetos, duas elegias, duas glosas, uma carta, uma ode, um poema em décimas heptassilábicas, um romance heroico e uma silva, a maioria dos 32 textos sem autoria atribuída.
“Como se vê, trata-se de um caso bastante insólito, não tanto pelo tema do adultério feminino, mas sobretudo pela decisão de a ré de assassinar o marido recorrendo a um tão ardiloso expediente. A severidade da sentença e o caráter espetacular de que se revestia na época o exercício da justiça ajudarão também a compreender a passagem do caso a tema poético. Tratou-se contudo de um interesse momentâneo, não tendo sido suficiente para que tais composições viessem a lume”, diz Francisco Topa, doutorado em Literatura.
ROMANCE Duas das páginas de ”O Lobo da Madragoa”, o romance de Alberto Pimentel sobre o poeta António Lobo de Carvalho, nascido em 1733, que inclui o caso de Isabel Clesse quando uma namorada do protagonista fala no assunto com a vizinha e acaba por decidir ir ver o enforcamento na Praça da Alegria (editado em 1904)
Mesmo assim, com a maioria a acreditar na justiça, tudo poderia ter ficado como se nada se passasse não se desse o caso de Isabel resolver deixara o lar rumo a um “recolhimento”, possivelmente por não ver outro meio de acabar com o matrimónio, já que o clister não fora mortal nem o arsénio atuara, pelos vistos. O “insulto”, como referem os juízes da Casa da Suplicação, aconteceu no dia 3 de maio, Tomás Luís só fez queixa em juízo a 15 de junho e porque Isabel “lhe fugira de sua casa e levara em sua companhia várias peças de ouro e prata, de seu uso, e vários trastes e roupas”.
Os juízes, assumindo não haver mais do que os testemunhos e os pacotes encontrados, já que o corpo de delito não consta do processo, dão como provado que o “veneno não foi nem podia ser nato, mas sim propinado, e introduzido na dita mezinha; pois ainda que os professores conhecem que não há diferença no efeito, e que o dito nato pode ter origem na corrupção de humores e moléstias a que frequentemente está exposta a humanidade, com tudo do mesmo efeito é que clarificam a diferença de um a outro veneno, assentando que quando for repentino é propinado e que quando opera moderada e sucessivamente se reputa nato”.
“Por tanto, condenam a Ré, a que com baraço e pregão pelas ruas públicas seja levada ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre; e a condenam mais em duzentos mil reis para as despesas da Relação, e nas custas dos Autos. Lisboa, 28 de Março de 1772.” No dia 31, Isabel Xavier Clesse ou Clerici é enforcada na Praça da Alegria. Uma multidão encheu o largo espaço de poucas casas e hortas, onde decorria a certos dias uma espécie de feira da ladra e que já se chamara Praça do Suplício, fazendo parte do lugar da Cotovia de Baixo.
CERTIDÃO Inscrição do casamento dos pais de Isabel, em outubro de 1739, nos registos paroquiais da freguesia de Santa Catarina do Monte Sinai, Concelho de Lisboa
Em 1868, o escritor Camilo Castelo Branco, intrigado com o caso e achando, dizia ele, que os leitores da “Gazeta Literária do Porto” lhe deviam agradecer, contou ter “malbaratado incessáveis esforços” para descobrir o paradeiro de Januário Rebelo e de Tomás Luís Goilão. O do primeiro encontrou-o numa nota à margem, na coleção de poemas enviada do mosteiro de S. Bento ao de de São Martinho de Tibães, no concelho de Braga: “O porta-bandeira desterrou-se em Espanha e morreu lá de paixão quando soube que Isabel fora enforcada”.
Para saber do marido de Isabel, é que foi uma “canseira”. Depois de “perdidas muitas noites em investigações aquém e além mar”, foi descortiná-lo em Goa, “casado em segundas núpcias com uma indiana de idade muito florente e sangue aquecido desde a infância do sol de lá. A goesa aceitara as propostas de casamento sabendo somente do noivo que nele se transferira”. E depois conta aquilo que, por ser de quem é, não se pode confiar a cem por cento... Que a mulher soube da história do marido por um militar chegado de Portugal interessado em catrapiscar a senhora Goilão.
O alferes disse-lhe que, se quisesse evitar dissabores, não guardasse em casa seringas nem mandasse aviar mesinhas na farmácia. “Dadas as explicações, a esposa horrorizada quis fugir ao marido que se lhe figurava, sobre carrasco, ridículo e nojento”. E Tomás, “desconfiado da honestidade da consorte, e do intento de separar-se, deu-lhe uma mão de pau e afuzilou dos olhos coriscos de fúria tal que a mulher concebeu e gizou traças de enviuvar antes que ele a fulminasse”.
“Não sei explicar o fenómeno. Narro com a simplicidade de historiador, deixando aos sábios a dilucidação das coisas que o distrito da minha apoucada ciência não abrange. O certo é que Tomás Luis Goilão durou seis dias a berrar que tinha água-forte nas tripas, e expirou sacudindo vertiginosamente umas seringas imaginárias que lhe esvoaçavam sobre a cabeça”, contava Camilo, concluindo: “Mas que trabalho tive para saber isto! Ninguém mo agradece”.