Mundial 2018

Álvaro Magalhães: “Hoje, um caso Saltillo na seleção é impensável. No México, a organização era à balda”

Álvaro Magalhães diz que o empate teria sido o resultado mais justo no jogo que o Irão do “matreiro” Carlos Queiroz ganhou por 1-0 a Marrocos Foto REUTERS

Álvaro Magalhães diz que o empate teria sido o resultado mais justo no jogo que o Irão do “matreiro” Carlos Queiroz ganhou por 1-0 a Marrocos Foto REUTERS

O antigo lateral-esquerdo do Benfica e da seleção ainda tem reservas em falar do que se passou em Saltillo, em 1986. Sem pessoalizar, Álvaro Magalhães conta que houve baldas, sobretudo da FPF, que explicam a derrota por 3-1 contra Marrocos, adversário que Portugal enfrenta esta quarta-feira (13h, SIC), 32 anos depois. Sem os pecados do passado, mas com “erros a corrigir” em relação ao jogo com Espanha

Texto Isabel Paulo

Portugal só defrontou Marrocos uma vez, no México em 1986. Perdeu por 3-1, num jogo de má memória. O que se recorda da partida?

Foi um Mundial em que as coisas correram mal desde início, a começar pela viagem, que durou quase um dia. O avião fretado para transportar a equipa teve um atraso de várias horas e fez quatro escalas. O cansaço dos jogadores, até psicológico, era visível. O resultado do jogo foi péssimo. Aos 29 minutos já estávamos a perder 2-0...

Mas começaram a bem, a ganhar à Inglaterra...

Ganhámos 1-0, depois perdemos contra a Polónia, também por 1-0. Tivemos a infelicidade do Bento, o nosso grande guarda-redes, se lesionar num treino após o encontro com a Inglaterra. Jogou o Damas, que também era bom, mas a confiança que tínhamos com o Bento era diferente.

É verdade que Vítor Damas chorou quando soube que o Bento se tinha lesionado?

No final desse treino, estávamos os dois a fazer a barba, o Damas olhou para mim e disse: “Álvaro, já fomos!”. Disse-lhe para ter calma, mas ele respondeu que o Bento era a equipa toda. Era de facto um guarda-redes especial. Podia estar 89 minutos sem quase tocar na bola, mas no último minuto aparecia um jogador à frente dele e estava concentradíssimo. Nunca se desconcentrava. Há jogadores que para estarem focados têm de estar sempre em jogo. Não são os guarda-redes. Grande é aquele que quando a bola ronda a baliza duas ou três vezes numa partida, está concentrado no limite quando ela lá chega.

A ausência do titular da baliza não justifica a derrota com Marrocos...

Não só. Pesou a turbulência da viagem e a desorganização geral por culpa de quem dirigia a Federação. Íamos jogar contra uma seleção africana e houve alguma negligência, quando se sabia que em África havia grandes jogadores. E bons treinadores. Na altura, o treinador era um brasileiro, José Faria, que colocou a seleção nos oitavos-de-final.

Não analisavam os adversários?

Não como agora. O José Torres já não está entre nós para se defender, mas a análise pormenorizada do adversário é fundamental.

Nessa altura, a seleção era ainda meio amadora?

A organização era bastante amadora. Tínhamos equipa, grandes jogadores, mas o resto deixava muito a desejar. O Diamantino ainda marcou aos 81 minutos, mas o jogo já estava perdido. Sofremos um golo aos 19 minutos, outro aos 28 e o 3-0 aos 62 minutos. Para Portugal e Marrocos bastava o empate para passarem ambos a fase de grupos e nós pensámos que era tudo fácil. Quarta-feira, a nossa equipa não pode pensar assim, Marrocos até é muito superior agora. A maioria dos jogadores nasceu em França e joga nas ligas europeias.

Portugal é favorito...

Apesar de sermos superiores, é preciso ter muita atenção aos adversários teoricamente mais pequenos para evitar surpresas como há 32 anos.

Fernando Santos não é de facilitar...

Claro que não. Treinou equipas pequenas e sabe perfeitamente que, por força da motivação, às vezes se superiorizam aos grandes. É um homem religioso, sabe o que é ter fé.

Na 1ª jornada, Marrocos até atacou mais e melhor, mas perdeu com o Irão, por 1-0 Foto EPA

Na 1ª jornada, Marrocos até atacou mais e melhor, mas perdeu com o Irão, por 1-0 Foto EPA

É incontornável recordar o Mundial do México sem falar do caso Saltillo ou das ameaças de greve. Hoje era possível ocorrer uma rebelião como essa na seleção nacional?

Ninguém acredita. Basta ver a organização que existe a todos os níveis. A liderança do presidente da FPF é fundamental, mas também o profissionalismo da estrutura.

Silva Resende não a tinha?

Não, nem as condições que agora existem.

O maior foco de revolta foi terem chegado ao México sem prémios de jogos definidos?

Era o reflexo da tal desorganização. O sucesso começa em pequenas coisas, do gabinete do presidente ao balneário. Quando se parte para um Mundial é preciso ir com tudo direitinho...

A ameaça de greve foi por causa dos prémios ou por um dos jogos-treino (vitória por 11-0) ter sido contra uma equipa de funcionários da hotelaria local?

Foi muita coisa. A equipa técnica e o diretor do futebol são quem escolhe os campos, as condições de trabalho, etc. Não houve cuidado. Era tudo à balda. E não pode acontecer. No último Mundial, no Brasil, também houve críticas por Portugal ter jogado muito longe do local de estágio. Jogar com temperaturas muito diferentes exige tempo de adaptação.

No México, os jogadores também não se baldaram?

Aí, não me intrometo. Cada um sabe de si. A disciplina é fundamental num clube e por maioria de razão quando se representa o país. E quando um treinador é disciplinador, às vezes tem dificuldade em trabalhar. O mal do futebol português é esse. A exigência para algumas pessoas é uma doença, quando devia ser um prazer. A exigência disciplinar é meio caminho andado para o sucesso. Não venham com histórias de que não é preciso disciplina. Eu era muito calmo, estava ali para representar a seleção...

Mantém contacto com os colegas dessa altura?

Infelizmente, os jogadores com quem estava sempre já não estão entre nós: o Bento e o Damas. Sentavam-se a fumar o seu cigarrito e eu, ao lado deles, a conversar, a ler o jornal. Nas folgas, íamos os três almoçar fora. Éramos amigos – o Bento foi meu colega de quarto – e eles mais experientes do que eu. Quando se é muito novo, é importante ter gente séria e competente ao nosso lado.

Marrocos perdeu com o Irão, com um autogolo. A vitória da equipa de Carlos Queiroz era previsível?

Para mim, não. Marrocos jogou muitíssimo bem e o empatezinho teria sido o mais justo. O Carlos Queiroz, matreiro, e bem, a jogar defensivamente e apostar no contra-ataque. Quando o Irão recuperava a bola, saía bem para o ataque. Sabia que tinha de fechar todos os caminhos a Marrocos e acabou por ter a sorte do seu lado.

Na seleção de Marrocos, há algum sector ou jogador a ter particular atenção amanhã?

Vai ser um jogo a doer. Não estamos lá, mas dá para adivinhar o discurso de Fernando Santos: muito cuidadoso. Aliás, as declarações dos jogadores têm sido de grande respeito pelo adversário, para evitar surpresas. Para ganhar campeonatos não se pode perder pontos contra equipas de menor valia. Há confiança, espírito ganhador, mas Portugal precisa jogar mais do que jogou contra Espanha. Não se pode ficar à espera de que Ronaldo decida tudo.

Na passagem da 1ª para a 2ª jornada, no Euro 2016, Fernando Santos fez três mudanças. Repetirá a fórmula no Mundial? Foto EPA

Na passagem da 1ª para a 2ª jornada, no Euro 2016, Fernando Santos fez três mudanças. Repetirá a fórmula no Mundial? Foto EPA

O empate foi um bom resultado, mas Fernando Santos já afirmou que há muita coisa a retificar e deu seis em 10 valores à equipa. Um suficiente...

Tivemos a sorte do jogo, um penálti, uma grande frangalhada do De Gea, um dos melhores do mundo, mas acontece. E muita Ronaldo-dependência que, no fim do jogo, num livre do outro mundo, empata o jogo. Não podemos estar sempre à espera que ele resolva tudo.

O que é preciso mudar?

Sei que é fácil criticar de fora, mas penso que Portugal tem jogadores para jogar de outra forma. Tenho muito respeito por Fernando Santos, uma pessoa extraordinária, o que não significa que seja bom em tudo. Acredito que com outro sistema tático o rendimento será melhor. Quando está aflito, coloca jogadores com características diferentes e a equipa muda...

Está a referir-se à entrada de Quaresma?

Quaresma, André Silva. Quando coloca dois alas. O Bernardo Silva jogou pela direita, mas na esquerda jogou Bruno Fernandes, que não é médio interior esquerdo, nem ala esquerdo, é para jogar nas costas do Ronaldo. Já no Europeu aconteceu isso no primeiro jogo. Se calhar agora, vai mudar outra vez.

Foi demasiado prudente?

Cauteloso foi sempre. O problema é não pôr a equipa a jogar pelos flancos. Jogar em 4x4x2, em losango, é fácil no papel, mas em campo posiciona-se num 4x3x3. Tem três médios de categoria, mas tem de jogar com três avançados, dois alas e um avançado, de grande mobilidade. Quis jogar com o Ronaldo e o Gonçalo Guedes, que não esteve no seu melhor. Taticamente, a equipa pode ser mais disciplinada a jogar de outra forma.

Ainda só fez um jogo, mas Ronaldo já é o melhor marcador do Mundial, com três golos Foto EPA

Ainda só fez um jogo, mas Ronaldo já é o melhor marcador do Mundial, com três golos Foto EPA

A incerteza de Ronaldo em relação ao Real Madrid e o assédio de outros clubes, como é o caso do PSG, que terá proposto pagar 300 milhões de euros pelo passe e 45 milhões/ano de ordenado, pode perturbar o seu rendimento?

A força de um grande jogador é a parte psicológica. E ele é muito forte, um predestinado. Mete na cabeça que vai conseguir e fazer qualquer coisa e faz. Não tem medo. De nada, mesmo que as coisas corram menos bem. É o que faz dele um dos melhores de sempre, o melhor do mundo para nós. Sinto que este é dos Mundiais em que está em melhor condição física. Nota-se até no aquecimento, pelo suor a escorrer na cara, pela concentração e querer. No aquecimento, a sua atitude dizia “estou aqui para ganhar”. Correu quilómetros, foi atrás e à frente, com uma vontade terrível.

Apesar dos 33 anos...

Sinal de que se preparou bem durante a época. No Real já não fez tantos jogos e aí há que dar mérito ao Zidane, que lhe deve ter dito que estava numa fase em que é preciso dosear o tempo de jogo e descanso.

Onde tem assistido aos jogos?

Antes do jogo estive na SIC a comentar, depois em casa.

O que mais o surpreendeu até agora? O passo em falso dos favoritos ao título?

Era imprevisível a derrota da Alemanha, tal como os empates da Argentina e Brasil. Outra desilusão é o VAR. Tem sido mais BAR de cervejinha. O vídeoárbitro tem falhado demasiado. Domingo, o lance de golo da Suíça contra o Brasil é falta. E no primeiro golo de Espanha há falta sobre o Pepe.

Acha que há receio dos vídeoárbitros em contrariar os árbitros de campo?

Há um certo medo. Há lances tão fáceis de avaliar pelo VAR e eles parece que têm problemas de anular as decisões de quem está apitar. Eles estão lá para observar e corrigir, mas numa competição tão mediática talvez haja receio de descredibilizar os colegas. Já a derrota da Alemanha com o México, que tem uma seleção fortíssima, explica-se sobretudo pela concentração. Para o México, jogar com a Alemanha é diferente de jogar com o Panamá. E é normal haver surpresas no primeiro jogo, embora os grandes depois acabem por passar à fase seguinte. No Europeu, Portugal também começou por empatar os jogos todos e acabou campeão.

O maior equilíbrio entre seleções deve-se ao facto de o futebol ser cada vez mais global?

Todas as seleções, mesmo as mais pequenas, têm jogadores a atuarem nas melhores equipas europeias, o que torna, de facto, as finais dos Campeonatos do Mundo mais competitivas. Com exceções, claro. A Arábia Saudita, coitadinha. O Jorge Jesus vai chegar lá e arrasar. Quando lhe disserem que têm de rezar, vai ser bonito.

Foi importante Rui Patrício ter sido contratado pelo Wolverhampton?

É sem dúvida uma boa notícia, sobretudo por ocupar uma posição muito específica. Fica numa situação mais tranquila.