Henrique Monteiro

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

O dia (ou a noite) de Mandela?

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Não deixa de ser irónico que no dia em que completaria 100 anos e em que se comemora, por iniciativa da ONU, o Dia de Mandela, estejamos a viver um período que, comparado aos dias de esperança da sua libertação, bem como o ar do tempo que na altura se vivia, mais pareça uma noite escura.

Mandela merece ser recordado – pelo combate, pela resistência, pela dignidade e (talvez sobretudo) por ter sabido perdoar a quem o perseguiu. O ex-preso político e ex-Presidente sul-africano entra na galeria restrita dos heróis do século XX ao lado de ‘quase santos’ como Gandhi ou de combatentes que pareciam perdidos e acabaram por vencer, como Churchill. Há poucos assim. E a má notícia é que hoje não se vê ninguém, sequer vagamente semelhante.

Como o ex-Presidente americano Barack Obama referiu em Joanesburgo, num discurso a propósito comemoração do centenário de Mandela, assistimos nestes tempos a ditaduras e regimes totalitários mascarados de democracias. Por todo o lado existem; da China, onde era uso e costume; passando por uma série inumerável de países de África, da América Central e do Sul e – o que é muito mais grave – a situações idênticas na Europa. A coroar tudo isto, a Casa Branca é liderada por um admirador deste tipo de governação.

O Dia de Mandela calha numa época anti-Madela. Porque antitolerante, nacionalista e não solidária; na qual o direito internacional praticamente não existe

Não vale a pena voltar a falar na Polónia, na Hungria, em Malta ou noutros países de que tanto já se falou. Do grupo de Visegrado que tem uma política desumana para os refugiados; da Itália com os seus populistas e proto-fascistas no Governo. Mas vale a pena recordar os dramas humanos na Venezuela (que entre nós tanto foi endeusada por gente que se pretende humanista); ou da Nicarágua, onde Ortega, um ex-revolucionário, que Governa o país tendo como vice-presidente a sua própria mulher, cai sobre o seu povo de forma violenta, sangrenta. Ou de países que andam na fronteira do totalitarismo, através de dirigentes populistas sem escrúpulos, como na Bolívia ou mesmo na confusão político-judicial em que se tornou o Brasil, passando por ditadores antigos como na Guiné Equatorial, assassinos como Duterte, nas Filipinas, e Kim Jong Un, na Coreia do Norte, e sem esquecer os eternos senhores do Médio-Oriente, seja da Arábia Saudita ou da Líbia e do Irão, e ainda o novo czar russo, Putin.

O Dia de Mandela calha numa época anti-Madela. Porque antitolerante, nacionalista e não solidária; na qual o direito internacional praticamente não existe (e recordemos a influência que as sanções internacionais à África do Sul tiveram para o fim do apartheid e para a libertação de Mandela). Ao contrário de um tempo de liberdade – e recordo que o Presidente dos EUA à época era Bush (pai), um republicano conservador – temos um tempo de sombras, com vastos espaços em que a liberdade está em perigo ou não existe. A esperança que Mandela trouxe, esvaiu-se. O dia transformou-se em noite.

Não é demais recordar que desde a sua libertação em 1990, até ao fim da sua presidência (1994-1999), vivemos anos de expansão democrática, de esperança livre, em tudo diferentes da depressão geral que hoje se experimenta. O muro de Berlim tinha caído um ano antes, a Alemanha ia unificar-se, a União Soviética caminhava para uma democracia e na América Latina, como em África e noutros locais do mundo, a liberdade parecia inevitável.

Para inverter o atual estado de coisas precisamos de lideranças. O que não é igual a poderosos ou a gente com poder. Sobretudo são necessários exemplos, que podem vir de dentro de uma cadeia, como o de Mandela, de discursos e ação destemida como os de Churchill, de resistências pacíficas como fez Gandhi.

É preciso quem arrisque, quem não tenha medo, quem não se recolha ao seu lugar de conforto e assista a esta degradação que em todo o mundo se sente.