Alemanha

“A política começa com a consideração da realidade”: como o governo alemão pode cair devido à lei da imigração

Merkel a tirar uma selfie com um refugiado sírio Foto Getty

Merkel a tirar uma selfie com um refugiado sírio Foto Getty

A CDU e CSU, partidos irmãos da coligação alemã com o SPD, medem forças para ver quem ganha na alteração da lei das migrações. Se o ministro do Interior impuser o controlo das fronteiras unilateralmente, Merkel poderá impedi-lo usando o poder constitucional que lhe assiste como chanceler. Muito provavelmente, Seehofer demitir-se-á, provocando a rutura do Governo e... novas eleições

Texto Cristina Peres

“Estou na expectativa de uma solução europeia. Só pode ser uma solução europeia”, responde Angela Merkel à jornalista que lhe pergunta se está “receosa de que a escalada de tom com a CSU” [União Social Cristã, partido irmão da Baviera da CDU, União Democrata Cristã] possa enfraquecer a sua liderança.

Durante a conferência de imprensa que se seguiu à reunião da CDU na sede de Berlim esta segunda-feira, a chanceler alemã deixou bem claro que não existe um automatismo que faça entrar em vigor a nova lei de migrações proposta pelo atual ministro do Interior e ex-ministro-presidente da CSU na Baviera, Horst Seehofer.

Se não houver acordo europeu na cimeira de final deste mês, o ministro do Interior quer dar início a uma substancial recusa de entrada a refugiados na Alemanha no prazo de duas semanas. O Spiegel Online titula “Uma nova dinâmica para a Alemanha” quando explica o que aconteceu com dois terços da grande coligação nos últimos dias. “Da União [designação para a aliança de décadas da CDU/CSU] à secessão” conta já três anos de episódios sucessivos, porém nunca as duas fações se tinham reunido separadamente no Bundestag como aconteceu na semana passada, nem os seus líderes alguma vez tinham disputado a atenção dos media como aconteceu esta segunda-feira, quando deram conferências de imprensa praticamente em simultâneo, Merkel em Berlim, Seehofer em Munique.

A questão em contenda está a ter uma relativa perda de importância. O número de pessoas que procuram asilo na Europa sofreu uma queda significativa: em 2017 houve perto de 730 mil candidaturas, menos 44% relativamente aos 1,3 milhões de pedidos de 2016, segundo o relatório divulgado esta segunda-feira pela agência europeia das migrações.

A diminuição das candidaturas para proteção interna dizem-nos que diminuiu o número de pessoas que arriscam atravessar o Mediterrâneo oriental em direção à Grécia e o Mediterrâneo central em direção a Itália. Mas nem por isso os ânimos parecem acalmar-se, em particular quando a chegada este domingo ao porto de Valência dos navios Dattilo (com 274 migrantes a bordo), Aquarius (com 106) e Orione (com 250) se tornou o símbolo mais recente do pomo da discórdia. Foto Getty

A diminuição das candidaturas para proteção interna dizem-nos que diminuiu o número de pessoas que arriscam atravessar o Mediterrâneo oriental em direção à Grécia e o Mediterrâneo central em direção a Itália. Mas nem por isso os ânimos parecem acalmar-se, em particular quando a chegada este domingo ao porto de Valência dos navios Dattilo (com 274 migrantes a bordo), Aquarius (com 106) e Orione (com 250) se tornou o símbolo mais recente do pomo da discórdia. Foto Getty

Os governos dos Estados-membros dividem-se e o assunto tem peso para fazer a Europa mudar. A Alemanha continua a ser o país europeu com mais candidatos a asilo, somando 222.560 em 2017, seguido de Itália, França e Grécia. O efeito desse peso faz-se particularmente sentir em Berlim, onde esta segunda-feira a CDU e a CSU se reuniram a nível interno e comunicaram publicamente de seguida as suas posições. Até ao momento, opõe-se a vontade da chanceler de ver o assunto resolvido a nível europeu e a pretensão do ministro do Interior, que propôs uma solução interna.

Há três anos que a discussão se arrasta, desde que mais de um milhão de requerentes de asilo e refugiados entraram na Alemanha atravessando outros Estados-membros a partir do verão de 2015.

Angela Merkel insiste que as prioridades têm de continuar a ser reduzir a imigração ilegal e diminuir as situações de perigo a que se sujeitam os candidatos a asilo para chegarem aos países de destino. “É um processo em curso, vejo uma continuidade de trabalho a ser feito para que 2015 não se repita”, disse a chanceler na mesma conferência de imprensa.

“ Uma chanceler e um ministro federal têm de ser capazes de conversar... Isto é uma exigência e essa exigência é um dado”
Angela Merkel, chanceler da Alemanha

A agenda semanal de Merkel, distribuída pela chancelaria todas as segundas-feiras bem cedo a quem quiser recebê-la, abriu esta segunda-feira de manhã com a visita de Giuseppe Conte a Berlim, que terá honras militares à sua espera na chancelaria berlinense. A conversa privada entre os chefes de Governo alemão e italiano sobre os temas que escaldam decorreu à porta fechada, no âmbito de um jantar: temas bilaterais, europeus e internacionais com a política europeia de migrações certamente no topo da agenda.

Foto Getty

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Conte, que tem 18 dias no cargo desde que tomou posse como primeiro-ministro de Itália a 1 de junho, e que já foi altamente elogiado pelo presidente dos Estados Unidos por ser “muito forte” nas questões da imigração, diz que concorda com Emmanuel Macron. Como? Um populista que montou campanha e Executivo promovendo políticas antieuropeias, e escolheu para ministro do Interior Matteo Salvini, o líder da aliança de direita Liga, declarou na sexta-feira, durante a sua visita a Paris, que o chefe de Estado francês tem toda a razão.

Macron, o homem que é visto como o líder pró-Europa do momento, defendeu que os regulamentos europeus que preveem que os requerentes de asilo se inscrevam no primeiro país europeu a que chegam e ali aguardem pelo processamento dos seus casos “não funcionam”: “A resposta adequada é europeia, mas a resposta europeia existente não está adequada”, disse o chefe de Estado francês.

Símbolos para todos os gostos

Os relatos da chegada dos navios a uma Valência de braços abertos (depois da recusa de Itália e Malta em receber os migrantes) falam da perplexidade dos resgatados perante a maior operação de acolhimento alguma vez montada por Espanha. Um gesto oportuno do também recém-empossado primeiro-ministro Pedro Sanchez, que previsivelmente lhe valerá pontos nas cimeiras da União Europeia.

No mesmo dia, símbolo do ambiente político instalado na Alemanha, a agência noticiosa DPA e a Focus Online adiantavam o nome do aliado bávaro de Seehofer que terá sido escolhido para liderar a agência federal das migrações e refugiados, BAMF na sigla alemã. Hans-Eckhard Sommer é conhecido como “linha dura” no que respeita aos candidatos a asilo e servirá para “restabelecer a confiança” na instituição após o escândalo dos vistos passados sem análise dos respetivos processos pelo diretor demissionário, que grassou nos últimos meses.

Falando ainda de símbolos, a ilustração da capa da última edição da revista “Der Spiegel” faz da bandeira alemã um mar alteroso com a proa de um navio a encabeçar o seguinte título: “A questão alemã - como lidamos com os migrantes? A crise de refugiados põe a administração Merkel em perigo”.

Horst Seehofer, ministro do Interior da Alemanha FOTO REUTERS

Horst Seehofer, ministro do Interior da Alemanha FOTO REUTERS

O “masterplan” de Seehofer

A imprensa especializada alemã é unânime: Angela Merkel está a tentar ganhar tempo. Não abre mão de uma solução europeia para as migrações enquanto o ministro do Interior puxa pelos galões do cargo para insistir numa solução interna para a Alemanha. O “masterplan” que Seehofer quer aplicar no país pretende que os migrantes já registados noutro Estado-membro tenham a entrada recusada na Alemanha.

Segundo o site da Deutsche Welle, isto daria potencialmente cabo do sistema de imigração de Dublin e ameaçaria o princípio da livre circulação dentro da UE. É o maior receio da chanceler, em particular se outros países europeus também impuserem controlos de fronteira. Além disso, a proposta de Seehofer violaria o direito que assiste a todo o requerente de asilo de ser ouvido.

“A política começa com a consideração da realidade”, respondeu a chanceler ao jornalista que lhe pediu para comentar a escalada de conflito entre os partidos da coligação. Durante este fim de semana, Merkel obteve uma vitória de curto prazo ao conseguir fazer que a política de migração alemã aguarde como está no presente pelas soluções que forem encontradas na cimeira europeia do final do mês.

Para tal, a chanceler vai passar as duas próximas semanas a tentar fechar acordos bilaterais com os parceiros europeus, começando pelos países imediatamente afetados pelo plano de Seehofer de fechar as fronteiras, Itália e Áustria. O charme com Conte é a ordem do dia.