MORREU HÁ 36 ANOS
Ian Curtis, o homem da biografia “depressivamente breve” (que falta nos fazes)
IAN CURTIS Demasiado bom, demasiado novo. Morreu aos 23 anos
Como é que alguém que decide pôr um ponto final na sua vida com apenas 23 anos e dois álbuns gravados se torna um ícone incontestável no mundo da música? Se calhar o segredo é a voz profunda, se calhar as letras desarmantes ou o olhar perdido. Nunca chegaremos a saber realmente quem era Ian Curtis, mas ele deixou-nos o suficiente para termos uma certeza - a música ficou melhor com ele. Ian Curtis suicidou-se a 18 de maio de 1980, há precisamente 36 anos
TEXTO MARIANA LIMA CUNHA
Ian Curtis não viveu o suficiente. Não viveu o suficiente para fazer parte do clube mais triste e épico da música, o clube dos músicos que morreram aos 27 anos e se tornaram lendas ainda maiores depois disso; não viveu o suficiente para lançar mais do que dois álbuns e comprovar o bom pressentimento que toda a gente tinha sobre ele; não viveu o suficiente para ver a filha Natalie, que não passava de uma bebé na altura, crescer.
Ian Curtis, a voz profunda dos Joy Divison que se tornou um ícone sem ter tempo para o perceber, enforcou-se na cozinha da sua casa de Manchester há exatamente 36 anos, a 18 de maio de 1980. Contava apenas 23 de vida. A fama, com tudo o que de bom e de mau lhe trouxe, só chegara dois anos antes. A epilepsia e consequente depressão com que batalhava acabaram por nos levar um dos artistas mais promissores do rock britânico.
Quem assistia a um concerto dos Joy Division achava que Ian era louco - muitos pensavam que se drogava, que bebia antes de subir ao palco. O homem dos olhos azuis transparentes, de poucas palavras, ouvia os primeiros acordes das suas músicas e parecia ficar possuído. Os gestos tornavam-se confusos, enérgicos, sem ordem nem sentido; o olhar perdido condizia com as danças descoordenadas.
Com o seu espetáculo em palco, Ian celebrizou o que ironicamente muitos batizaram como “a dança da epilepsia”. Conforme os seus antigos colegas de banda, hoje mais conhecidos como os músicos dos New Order, relatam, a doença que Ian possuía em segredo não lhe permitia, por vezes, chegar ao fim dos concertos, deixando o público a vaiá-lo sem perceber o que se passava com o jovem cantor. “Ian era o seu pior inimigo - nunca queria perturbar-nos, por isso dizia-nos o que queríamos ouvir. Foi por isso que nunca tivemos ideia do sofrimento ou dos sentimentos dele”, escreve Peter Hook, baixista dos Joy Division e depois dos New Order, num texto publicado no “The Guardian” em homenagem a Ian.
36 years without #IanCurtis RIP and keep dancing. https://t.co/5I67uRLvZT #JoyDivision
— Mary (@Myrucsa) 18 de maio de 2016
Até àquele concerto dos Sex Pistols a que assistiu em 1976, no qual conheceu por acaso os futuros colegas de banda, a vida do vocalista confunde-se com a de outro rapaz de Manchester qualquer. A vida de Ian resume-se rapidamente - como a NME escrevia num obituário atrasado de 2010, “a biografia dele é, até para os padrões do mundo do rock, depressivamente breve”. Ian nasceu em Stretford, em julho de 1956, e apesar de sempre ter gostado de poesia, acabou por aceitar um trabalho de secretaria na administração pública das 9 às 5, sem mostrar interesse pelo mundo da música. Aos 19 anos casou, e parecia que a sua história ficaria por aí. E depois houve aquele concerto dos Sex Pistols.
A ascensão dos Joy Division foi rápida, talvez demasiado rápida para que Curtis se conseguisse adaptar à sua nova vida, que agora era tudo menos convencional. Do primeiro EP ao álbum final, “Closer”, existe um período execionalmente breve de apenas dois anos. Em 1978, os rapazes de Manchester assinaram contrato com a Factory Records, a companhia discográfica de Tony Wilson; um ano depois lançavam “Unkown Pleasures”, o disco que os lançou para o estrelato sem grandes obstáculos pelo caminho. Nascia Ian, a estrela dos olhos perdidos.
“A confusão nos olhos dela diz tudo / Ela perdeu o controlo (...) Ela gritou, pontapeou e disse / Perdi o controlo outra vez / E caiu ao chão, pensei que tivesse morrido e disse / Perdi o controlo outra vez”. É em “She’s Lost Control”, desse primeiro álbum, que Ian detalha, percebemos agora, a luta contra a epilepsia que lhe fora diagnosticada nesse ano e que nunca deixaria de o atormentar. “Quando a escuridão chegou, eu fui abaixo e chorei”, prossegue a voz profunda de Ian, a melodia cada vez mais angustiante, claustrofóbica.
A 36 años de la muerte de frontman de #JoyDivision, recordamos así a Ian Curtis https://t.co/cm1AZ41D9Q
— azulgris (@azulgris_web) 18 de maio de 2016
Nos curtos 23 anos que viveu, Ian viveu emoções suficientes para pintar os únicos dois álbuns que gravou de emoções e letras cruas. Casado com a namorada da juventude Deborah desde os 19 anos, Ian foi pai de Natalie aos 22. No filme “Control”, em que Anton Corbjin traça com mestria uma biografia de Curtis a preto e branco, assistimos à angústia do brilhante Sam Riley ao evitar pegar na filha ao colo, temendo novo ataque de epilepsia.
O casamento desmoronava enquanto Ian conhecia e se aproximava da futura amante, a jornalista belga Annik Honoré. Mais uma vez, e ao contrário do que se pudesse pensar de um ídolo misterioso como Ian, não é difícil seguir as pistas do drama: naquela que é provavelmente a canção mais popular da banda, “Love Will Tear Us Apart”, Ian parece contar com sinceridade o que se passa na intimidade do casal. “Quando a rotina ganha força e as ambições são poucas / E o ressentimento é muito mas as emoções não crescem / E estamos a mudar a nossa forma de ser, por caminhos diferentes / Então o amor, o amor vai separar-nos de novo”. Depois, o excerto que os fãs interpretam como uma referência ao caso com Annik: “Tu choras quando adormeces / Todos os meus erros expostos / E há um sabor na minha boca / Quando o desespero toma conta / Porque algo tão bom já não funciona”.
Ian Curtis died 36 years ago! Wow, a tribute to what could have been 😓😓😓😓https://t.co/NVK8MCdAYg via @youtube
— Lou Spanos (@heyspan) 18 de maio de 2016
A depressão de Ian tornava-se mais profunda quanto mais a doença o impedia de cantar, quando o obrigava a interromper concertos e forçar saídas de palco precoces. “Ian estava muito doente quando gravámos Closer, desmaiava muitas vezes. Gravámos o álbum em março. Ian estava a trabalhar bem com o nosso produtor, Martin Hannett, que insistia em trabalhar de noite - Ian gostava da paz e do silêncio”, relata Peter Hook.
Os colegas de banda sentiram-se culpados por não terem conseguido perceber e ajudar Ian a tempo - afinal, o desespero dele, que agora parece óbvio, estava exposto até nas letras das canções. “Não tínhamos muito dinheiro, não comíamos como deve ser. Fazíamos quatro concertos em três dias. A doença do Ian estava a piorar e nós não ajudávamos, por ignorância”, prossegue o baixista. Nessa altura, Ian tentou tirar a própria vida em duas ocasiões: na primeira, magoou-se com uma faca de cozinha, “num momento de desespero estilo Iggy Pop”. Na segunda, tomou uma overdose de comprimidos.
Segundo o relato de Peter Hook, depois destes episódios o produtor Tony Wilson simplesmente levava Ian de volta ao estúdio, diretamente do hospital, e o cantor garantia que “estava tudo bem” e que podia continuar a trabalhar. Só no dia 18 de maio, quando a polícia encontrou o corpo de Ian e ligou aos colegas de banda, perceberam que a ajuda de que ele precisava não tinha chegado a tempo. Aconteceu no início da digressão norte-americana, a seis semanas do lançamento de “Closer”. “Era pela música que ele tinha lutado a vida toda. Nenhum de nós queria desistir”, recorda Hook.
Os ex-Joy Division sabem que a curta história da banda vai ser para sempre “ofuscada” pela trágica morte do vocalista; é um daqueles casos em que nunca poderemos saber quem teria sido o Ian mais maduro, mais adulto, talvez com ajuda médica e com o apoio de que precisava em segredo. Mas é injusto dizer que Ian não nos deixou elementos suficientes que justifiquem o título de uma das vozes mais promissores da música britânica, ele que, diz a NME, “em dois anos conseguiu definir o pós-punk britânico e mudar a música de Manchester para sempre”.
Em “Control” há uma cena final, depois do grito arrepiante de Deborah quando sabe da morte do marido, em que a câmara sobe e foca o céu a preto e branco. Como pano de fundo ouve-se “Atmosphere”, uma das canções mais obscuras e ao mesmo tempo reveladoras que Ian escreveu. É assim que ele canta: “Não te afastes em silêncio / As pessoas como tu pensam que é fácil”.
One of my all-time favourite songs - Joy Division Atmosphere #IanCurtis https://t.co/CECHm4ceHc
— Alan Davies (@alpdavies) 18 de maio de 2016