Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteiro
Sarampo, vacinas e modernidade
É um dado curioso verificarmos como a reação à modernidade anda de braço dado com as teorias mais estapafúrdias e que se consideram a si mesmo modernas ou revolucionárias. Podemos encontrar reações dessas no caso das vacinas (e já lá iremos), mas igualmente no que diz respeito aos OGM (organismos geneticamente modificados) ou, no plano político, nas reações à globalização, não através da exigência de mais e melhor regulação e distribuição de rendimentos, mas sim de políticas nacionalistas e antimultilaterais, como as que o PCP ou o Bloco tomam sobre a Europa ou a parceria transatlântica (TTIP).
É arriscado refletir sobre esta multiplicidade de casos (e há pessoas a favor de umas coisas e contra outras das acima descritas), tentando encontrar-lhes um denominador comum. Mas é tentador. As reações à modernidade são sempre muito diversas e só não incluímos aqui a defesa implacável dos chamados ‘direitos adquiridos’ para não baralhar ainda mais as coisas.
Mas vamos por partes. Ontem, numa NOTÁVEL ENTREVISTA concedida ao Expresso Diário, que subscrevo integralmente, o médico e pediatra Mário Cordeiro (de quem já tive a honra de apresentar um livro) disse, preto no branco, como deve ser, que “o movimento antivacinas é idiota e uma afronta aos mortos”. Pois é, meu caro, é totalmente idiota. E é, como também Mário Cordeiro diz, demagógica e desonestamente interligado com a ecologia. Também concordo! Mas acrescento: há uma parte da ecologia que não é mais do que uma transposição da ideologia que preside ao movimento antivacinas.
Verifiquemos o caso dos OGM. Sabe-se que sem OGM não haveria hoje comida na quantidade que existe e que tem, ainda assim, minorado a fome no mundo. Claro que tudo deve ser bem controlado; claro que os animais criados de determinadas formas (nomeadamente em aviários) chocam as nossas boas consciências (e por isso o Bloco de Esquerda colocou no seu programa que só permitiria aviário ‘free range’, ou seja onde as galinhas andam à vontade). A ideia é confortante, mas muito menos gente comeria carne de frango se deixássemos tudo ao cuidado da natureza. O preço seria muito mais alto e, tal como nas vacinas, haveria quem não resistisse.
Nos dois exemplos, e socorrendo-me ainda da entrevista do pediatra, existe a teoria da conspiração. Onde uma é contra as multinacionais farmacêuticas, outra é, sobretudo, contra a Monsanto, uma multinacional de produtos agrícolas modificados. Tal como as vacinas inoculam anticorpos de forma artificial, repetindo o que a natureza fez durante milhares de anos, também tudo o que comemos, animal ou vegetal, foi modificado geneticamente em milhares de anos. O primeiro trigo que a deusa Ceres (figura feminina da mitologia romana que está na origem da palavra sereias) colheu seria intragável para qualquer cidadão atual. Foi através do processo de escolha e cruzamentos de espécies que chegámos aqui. Os OGM aceleram essa escolha e processos (que são naturalmente, eles próprios, processos químicos) para uma velocidade inacreditável.
No fundo, todas estas reações são à modernidade. Assentam na desconfiança de que alguém anda a ganhar à nossa custa (o que é verdade, mas sempre foi)
O mesmo se pode dizer de alguma ecologia radical, felizmente minoritária. Lembram-se de quando esses queriam proibir o ar condicionado, os frigoríficos e os vaporizadores com CFC por causa da camada de ozono? Felizmente não foram ouvidos. Hoje temos essas comodidades sem riscos para o ozono (e o célebre buraco fechou, um pouco misteriosamente e ninguém mais ouviu dele falar). As últimas notícias que encontrei são do ano passado e diziam que o buraco de ozono tinha encolhido e cicatrizado. A área que encolheu é igual à da Índia. Foi melhor assim do que viver sem ar condicionado, sem frigoríficos e sem laca para o Presidente Trump.
No fundo, todas estas reações são à modernidade. Assentam na desconfiança de que alguém anda a ganhar à nossa custa (o que é verdade, mas sempre foi) e que há uma conspiração latente nesses movimentos. Por isso incluí nessa reação aquelas que se fazem sentir à globalização. Transpondo para o que se passou com o buraco de ozono, alguns querem simplesmente voltar atrás. Impossível! Outros, a meu ver bem, querem regular o que deve ser regulado – no fundo é como começar a fabricar frigoríficos não agressivos para o ambiente.
O nacionalismo, as saídas do Euro, o rasgar de vestes contra acordos de comércio com os Estados Unidos são todos desta ordem. O mundo vai por um caminho que assusta muita gente. O mais irritante é essa gente armar-se em progressista e proclamar os valores da reação como valores de esquerda ou revolucionários.
Quase tão triste são aqueles que pretendem logo tornar obrigatório, com o selo napoleónico do Estado Central, uma determinada forma de fazer as coisas. Há quem queira multar quem não vacina os filhos. Mais uma vez Mário Cordeiro diz que não é necessário, e bem (embora eu pense que o SNS deveria penalizar por qualquer modo quem não segue as suas recomendações). Mas o que é necessário, isso sim, é a censura social e as campanhas de informação positivas. O mesmo para a importância dos OGM (e da sua fiscalização) ou para as implicações, por exemplo, da saída do Euro. E, neste aspeto, sou o primeiro a lamentar o péssimo jornalismo que é feito. Em qualquer dos casos, tudo o que parece modernaço tem muito poder, demasiado poder de tração sobre a Comunicação Social. E o acesso às redes sociais de gente sem formação nem escrúpulos tornou o que já era preocupante num autêntico festival de estupidez.