BRASIL | CRÓNICA
Anatomia de um instante ridículo
Grupo que invadiu parlamento brasileiro e pregou golpe militar mostrou que manifestações podem ser intolerantes e risíveis
TEXTO PLÍNIO FRAGA, NO RIO DE JANEIRO
O plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, abrigava apenas seis parlamentares ao meio da tarde de quarta-feira. Ocupava a tribuna um político obscuro, que se vangloriava de informar benefícios paroquiais conquistados para a pequena cidade do interior que lhe serve de base eleitoral.
O tédio dos outros cinco parlamentares foi chacoalhado por um grupo de senhores e senhoras que arrombou a porta de vidro do acesso ao plenário e invadiu o parlamento brasileiro.
Os cerca de 50 invasores aproveitaram a vantagem numérica para chamar parlamentares de ladrões face a face. Não ouviram resposta. Pediram o fim da corrupção e deram loas ao juiz Sérgio Moro, que comanda a maior investigação de corrupção política da história.
— 📽FLÁVIO OLIVE📥 (@FOliveVideos) 16 de novembro de 2016
O pior viria quando defenderiam a necessidade de uma intervenção militar no governo brasileiro e exigiram a presença de um general. Ainda há quem acredite que estrelas nos ombros conquistadas na caserna podem mover os céus.
“Eu sou o povo”, gritou um dos invasores mais inspirados. Analisados um a um, tinham a cara da gente brasileira, mas seus anseios não parecem ter sustentação popular.
A Câmara gosta de se definir como a “casa do povo”, mas aquele povo ali estava esculhambando tudo e a todos. A mesa diretora acionou então a segurança interna, que não pensou duas vezes em dar uns safanões no povo invasor.
Depois de três horas de esfrega-esfrega, o grupo deixou a Câmara sem que tenha derrubado o governo e reinstalado a ditadura. O máximo que conseguiu, além de quebrar algumas portas, foi evidenciar que mobilização de parte do povo pode ser também intolerante, estridente e um tanto ridícula.
O sistema político brasileiro vive uma crise de representação. As leis eleitorais distorcem a representação popular, permitindo que as lideranças estejam cada vez mais distantes dos anseios mais prementes dos eleitores, sem que temam por tal isolamento. Mas daí um grupo, que se designa “Os Patriotas”, pedir intervenção militar só pode estimular a chacota em torno de instituições e conceitos sérios como o parlamento e a democracia representativa.
Olha como está nosso país https://t.co/1lfoi98jc4
— Eliezio Assis Farias (@EliezioFarias) 16 de novembro de 2016
Depois de 21 anos de ditadura militar, escuridão que se perpetrou entre 1964 e 1985, a maioria dos brasileiros rejeita os militares, à sua casta e os seus temas desde quando o país se redemocratizou.
Os militares reclamam hoje de baixos soldos, sucateamento das Forças Armadas, redução de orçamento, falta de investimento em projetos essenciais. Muito provavelmente eles têm razão, mas seus pleitos estão atrás de uma carrada de necessidades mais urgentes e populares.
É certo também que os militares não discutem profissionalização da tropa, renovação e modernização do pensamento estratégico, adequação de seu papel em uma sociedade que rejeita hoje qualquer tipo de tutela, seja de quem for.
O Brasil vive seu maior período democrático sem interrupções de sua história. São 31 anos de saudável prática democrática. Independentemente de qual força política esteja no poder, esta é uma conquista a ser comemorada por todos. Não deveria haver dúvida de que a democracia é a melhor solução para dirimir conflitos, acertar consensos, estabelecer parâmetros de convivência entre opostos, erigir e derrubar governos.
O escritor espanhol Javier Cercas, em “Anatomia de um instante”, a talentosa narrativa sobre o golpe militar frustrado na Espanha em 1981, anotou assustado que a resposta popular à tentativa de intervenção militar foi nenhuma. Lamentou que muitos não sabem ou não podem entender que, caso se perca o respeito por alguém ou alguma instituição, este não pode mais ser recuperado. A democracia - a casa da tolerância política - exige respeito e vigilância eterna.