O POEMA ENSINA A CAIR
A POESIA É COMO O BUNGEE JUMPING. O QUE INTERESSA É A EXPERIÊNCIA DA QUEDA
Quando olha para o jornal e logo depois para o seu pequeno filho, lembra-se de imediato do verso de Sophia: "terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo". Catarina Nunes de Almeida, 32 anos e quatro livros de poesia publicados, atira-se aos versos no Expresso Diário com a leitura de um poema do seu mais recente livro "Marsupial" e sugere a leitura de um poema sem título de Daniel Faria
TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO
«São tão largas as noites
para a concisão de um corpo.
Tão escuro o sorriso que as pernas abrem
ao mundo.
E no entanto animal que passe
aloira-se nas águas e geme
de uma alegria que tem flores e frutos.»
Catarina Nunes de Almeida (1982) começou cedo a transformar as coisas que a rodeavam em palavras. Talvez pensasse poeticamente e não soubesse disso, mas os outros, os colegas da escola, perceberam-lhe o jeito para contar histórias e pediam-lhe para fazer também as composições deles. Das composições aos versos a distância fez-se curta porque «a prosa tinha muito espaço para as palavras» e porque gosta de concisão. Ser concisa e, no entanto, encontrar o mais no menos, como um agasalho: «gosto de lugares pequeninos, de estar dentro do cobertor, sabes? A poesia é um bocadinho estar dentro do cobertor, tens que conter o mundo lá dentro e agasalhá-lo assim». Talvez assim se explique a admiração pelos haiku dos japoneses onde se diz muito com poucas palavras, e talvez seja também por isso que estudou as marcas do pensamento estético do extremo oriente na poesia portuguesa contemporânea para o doutoramento em estudos literários, e que atualmente estuda as viagens na literatura portuguesa contemporânea para o pós-doutoramento.
QUANDO ESCREVO ASSUMO OUTROS
Licenciou-se em Língua e Cultura Portuguesa mas podia ter seguido História ou Teatro: «Se calhar sou uma atriz frustrada e, se calhar, é pela poesia que acabo por resolver as minhas frustrações de atriz não conseguida, porque quando escrevo assumo outros». Fala do fingimento poético como uma construção necessária para contar uma história que pode ser a sua ou a de outra pessoa qualquer, e é por isso que não gosta que os avós a leiam: «É óbvio que os meus avós pegam nos meus poemas e para eles aquilo é tudo Catarina Nunes de Almeida, mas não é assim».
Mas há exceções a esta ideia. O último livro de Catarina Nunes de Almeida, Marsupial, é sobre a experiência da maternidade, e «realmente» foi mãe. Gosta de dizer que foi escrito com o filho Gustavo e não para dedicar ao filho Gustavo, e que o nome dele devia estar ao lado do dela na capa do livro.
Explica que a produção poética é muito parecida com a experiência da maternidade porque «o poeta carrega a palavra, o poema, e tudo isso tem uma maturação, é um processo longo. Essa espera é muito maternal», e que o filho, como um poema, lhe proporciona uma viagem onde «todos os dias as paisagens são diferentes», tanto que «tentar compreendê-lo é como estar num país estrangeiro».
SE PUDESSE COMPRAVA TODOS OS EXEMPLARES DO PRIMEIRO LIVRO
Escreve poemas desde a adolescência e publicou o primeiro livro, Prefloração, aos 23 anos, na sequência do Prémio Daniel Faria. Concorreu para «ver o que as pessoas achavam do que escrevia», e ganhou, mas hoje sente-se distante dele: «Odeio esse livro, se pudesse fazia como o Jimi Hendrix em relação ao primeiro disco dele, comprava para mais ninguém comprar. Às vezes faço isso». O primeiro livro de Catarina Nunes de Almeida tem uma forte componente erótica, «uma série de ritos de passagem como mulher», universo que mantém nos outros três, mas explica que agora apurou a linguagem e «já sabe brincar melhor do que em 2006».
O poema que escolhe para ser lido aqui é de Daniel Faria, o poeta que lhe abriu a porta da poesia, «como um mestre», e um dos vários poetas portugueses sobre quem já escreveu ensaios. Antes dele, gostou do Alberto Caeiro e do António Ramos Rosa. Mas, para ser rigorosa, conta que escutou poesia muito antes da a poder ler pela mão do avô Armando e da avó Graça quando lhe deram «um tempo e um lugar para estar com as árvores, as amoreiras cheias de pó, e as enxurradas do rio Ceia».
A poesia serve para quê?
Acho que nunca vou ter resposta para isso, felizmente. Para mim é uma forma de locomoção. Há pouco tempo, num poema ainda inédito, escrevi: «O poema é apenas uma forma delicada de um homem se despenhar /sobre os destroços de um outro homem». No fundo, a poesia tem tanta serventia como experimentar bungee jumping, com a diferença que o que nos espera lá em baixo é um terreno com nome de gente e com sabedoria de gente. O que interessa mesmo é a experiência da queda. Se a poesia fosse uma coisa útil, se cumprisse uma função clara, os poetas recebiam salário.
Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
O verso de Sophia de Mello Breyner Andresen: «Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo». É o primeiro que me vem à cabeça quando olho para um jornal e logo depois para o meu filho.
Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Tenho dúvidas que alguma vez escrevesse se não tivesse nascido e crescido em Portugal. Ou melhor: se não pudesse escrever em português. Ainda assim, dou uma segunda hipótese a Itália, porque também já fui muito feliz naquele país e naquela língua.
Um bom poema é...
O meu filho.
O que o comove?
O silêncio, por exemplo. Por ser tão raro.
Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
Talvez um haiku de Bashô (numa tradução de Jorge Sousa Braga): «Não há arroz / mas tenho na malga / uma flor». Existe, em certas pessoas, a capacidade de transformar o terrível ou o desatroso em algo de belo. De ver o reverso luminoso da medalha. Mas a um primeiroministro deve ser dito também que essa capacidade não é permanente, que tem os seus limites, que não enche a barriga. Enfim, tratase de um poema breve, ideal para um homem ocupado.
Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Ficariam poemas de amigos. Alguma coisa a condizer com os últimos sapatos com que me viram calçada. Nada de poemas lamechas, só felizes. A minha campa podia ser qualquer coisa de muito adolescente. Que se parecesse com aqueles braços de gesso cheios de dedicatórias.
POEMAS Catarina Nunes de Almeida lê um poema do seu livro "Marsupial" e sugere a Raquel Marinho a leitura de um poema sem título de Daniel Faria