Gaviscon, caro Tavares
A não ser que haja uma polémica com algum interesse em que posições divergentes possam contribuir para o debate político, não costumo responder a outros colunistas. Na semana passada fui alvo de vários artigos, de José Manuel Fernandes a João Marcelino, e mantive-me em silêncio. Não é arrogância, é respeito por quem me lê. Na maioria dos casos os leitores não são os mesmos, não acompanham estas trocas de galhardetes e sentem-se estranhos a este exercício narcisista dos colunistas. Só que no caso que hoje tratarei há um histórico que, depois de tantas referências, começa a exigir resposta.
João Miguel Tavares transformou-se numa espécie de polícia de costumes, passando a pente fino as credenciais antissocráticas de cada colunista e jornalista. A excitação com o momento que vivemos até lhe serviu, recentemente, para pôr em causa a legitimidade de um jornalista com o currículo de Ferreira Fernandes dirigir o “Diário de Notícias”, como pode ler AQUI. A sua postura inquisitória ultrapassa o caso de Sócrates e permitiu-lhe insinuar que o antigo diretor do “Diário de Notícias” Paulo Baldaia e outros jornalistas da TSF e colunistas do DN tinham criticado a forma como o processo contra Dias Loureiro foi encerrado para agradarem a Daniel Proença de Carvalho, seu advogado (LER AQUI). Tendo em conta que eu, sem qualquer relação pessoal ou profissional com Proença de Carvalho e nos antípodas políticos e éticos de Dias Loureiro, fiz a mesmíssima critica (coisa que Tavares resolveu DIZENDO, de forma encriptada, que isso só reforçava a sua tese “de que tudo acaba por desembocar no suspeito do costume” , talvez esteja na altura de explicar a João Miguel Tavares o que o separa da maioria dos democratas.
João Miguel Tavares diz, no seu texto, que eu não sou um idiota. Agradeço a distinção. Infelizmente, não a posso retribuir. Mas posso desejar-lhe que o caso Sócrates e suas derivações durem por muitos anos. Para que nunca seja obrigado a partilhar connosco alguma ideia política
Estou entre os que se opõem à delação premiada, por incentivar a mentira e os erros judiciais, os que não sabem o que quer dizer “simplificação da prova” mas querem ter a certeza que os acusados têm a possibilidade de defesa e os que mantêm dúvidas jurídicas quanto à figura do enriquecimento ilícito. E mesmo assim acho que os julgamentos não devem ser feitos através dos jornais e o Ministério Público tem o dever de, dentro dos limites da lei, fazer bem o seu trabalho. Era mais fácil apanhar corruptos sem o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos? Os corruptos, os homicidas, os terroristas, os violadores, os pedófilos, os incendiários. Serve para todos os crimes graves, alguns bem mais graves do que a corrupção. Lembro-me que facilitámos as escutas (provavelmente bem) e isso, em vez de servir para recolher provas para condenar corruptos, tem sido usado para vender jornais e destruir pessoas sem ter de as julgar. Sei, portanto, que a limitação de todos os poderes (do Estado ou dos privados, do Ministério Público ou dos políticos) continua a ser uma boa regra da democracia. João Miguel Tavares acha que defender isto é uma mera “enunciação de princípios abstratos”, o que faz de mim um “cúmplice do estado moralmente miserável em que nos encontramos”.
Apesar da incompreensível confiança que Tavares tem na sua superioridade moral, considero-me muito mais coerente na minha repulsa pela corrupção do que ele. Porque eu ponho a corrupção no mesmo patamar da violação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Ambas são ameaças à democracia. Já João Miguel Tavares não tem qualquer problema em sacrificar princípios constitutivos da liberdade e da justiça em nome do combate à corrupção. João Miguel Tavares nem tem problemas em assumir de que lado está. CHAMA aos que não concordam com as alterações que ele defende na justiça “grandes defensores do Estado de Direito” . E isso, na sua boca, parece ser uma coisa má.
Claro que Tavares pode dizer, e nisso tem razão, que uma sociedade que não combate a corrupção é uma sociedade que não defende o Estado de Direito. Assino por baixo várias vezes. O debate é sempre o de saber onde está a fronteira entre a justiça e a arbitrariedade. Como para Tavares esse debate é uma mera “enunciação de princípios abstratos” desejada por quem, no fundo, é cúmplice da corrupção, o diálogo fica difícil. Se ele acha que discutir o equilíbrio entre a eficácia da justiça e os direitos dos cidadãos é já uma concessão aos corruptos não há nada que um democrata possa discutir com ele.
Num TEXTO DE FEVEREIRO, Tavares disse que a diferença, neste debate, está onde se põe a adversativa. Ele diz que várias regras do Estado de Direito foram violadas (no caso refere-se ao segredo de justiça, mas o raciocínio é transversal e até já tinha usado noutros textos) “mas” não tem duvidas de que os mais poderosos devem ser punidos pelos seus crimes. Aqueles que ele critica dizem que os mais poderosos devem ser punidos pelos seus crimes “mas” várias regras do Estado de Direito foram violadas. Tem razão: faz toda a diferença o que está antes e depois do “mas”. Para quem defende o Estado de Direito, a justiça depende do respeito pelos limites impostos a quem investiga. Sem isso temos um poder arbitrário. E o problema de quem vê esses limites como uma cumplicidade com a corrupção é que, prescindindo do Estado de Direito, perde toda a legitimidade moral para julgar corruptos. Este debate é uma batalha antiga dos democratas e também se aplica à segurança. Como sabe João Miguel Tavares, foi resumido pela estafada frase de Benjamin Franklin: “aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança.” Eu digo o mesmo sobre quem está disponível para prescindir do Estado de Direito para combater a corrupção.
Sendo este um tema sensível, seria de esperar que João Miguel Tavares fosse cuidadoso na forma como o faz. Isso não faria dele menos militante no combate à corrupção, apenas mais sério. Mas como não gosta de debater princípios abstratos (sem os quais qualquer debate sobre a justiça, a lei ou a democracia é conversa de café), prefere pessoalizar o confronto, insinuando quase sempre que quem defende uma posição diferente é cúmplice de corruptos.
Foi isso que fez, em dezembro do ano passado, num texto sobre a Raríssimas em que insinua, vá-se lá saber porquê, que eu saberia qualquer coisa sobre Sócrates que preferi calar: “João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem era José Sócrates e até agora ainda não reportaram coisa alguma — e tanto que teriam PARA NOS CONTAR”. Na altura não lhe respondi, porque a sua tática de distribuir insinuações por colunistas para ganhar uma atenção que não merece tem sido demasiado recompensada. Faço-o agora, de uma só vez. Foram tantos os textos que já me dedicou que a resposta que dou ao último é mais abrangente.
O título do SEU ÚLTIMO TEXTO tem a sofisticação intelectual que conhecemos nas suas análises: “Coisas que me dão a volta ao estômago” . Nele, João Miguel Tavares acusa-me de comparar Sócrates a Passos Coelho. Talvez devesse escrever quando os distúrbios estomacais não lhe toldam a atenção. Em nenhum momento faço tal comparação. Se comparo alguma coisa é Santos Silva, Vieira da Silva e António Costa a Passos Coelho. O meu texto pretende criticar a culpabilização por associação. RECORDO O QUE ESCREVI, porque mesmo na edição online o João Miguel Tavares tem o hábito de não dar aos seus leitores a oportunidade de lerem os textos que ele critica: “Assumindo que é mais responsável o primeiro-ministro pelos atos de um ministro que escolheu do que o ministro pelos atos do primeiro-ministro por quem foi escolhido, todos os anteriores líderes de governo devem ser responsabilizados até às últimas consequências por atos de ministros seus. Pelo menos praticados antes (tinham o dever de o saber) ou durante a participação no governo. O que significa que Passos Coelho está no banco dos réus políticos enquanto Miguel Macedo não for absolvido.”
Ou seja, em nenhum momento coloco “Passos e Sócrates no mesmo patamar” e é o próprio Tavares que o reconhece, logo depois de o afirmar: “não se trata de averiguar se um primeiro-ministro sabe tudo o que fazem os seus ministros, mas se os ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem absolutamente nada do que ele anda a fazer ”. Só porque num caso Tavares decide que eu quero que Passos saiba tudo sobre o seu ministro e ele, no outro, apenas deseja que os ministros saibam alguma coisa sobre o primeiro-ministro é que as coisas parecem diferentes. Se retirarmos o jogo de palavras fica difícil perceber o que dá a volta ao estômago de João Miguel Tavares e onde raio viu ele, no meu texto, Passos e Sócrates no mesmo patamar. O que lhe dá a volta ao estômago é eu referir outros casos quando, para ele, todos os outros casos de corrupção têm a função de, no fim, dizer que são incomparáveis a Sócrates. Sem conhecer os sintomas exatos, talvez Gaviscon ou Rennie resultem. Se mesmo assim a indisposição permanecer aconselho Omeprazol.
Desde que Sócrates o processou e o atirou para a ribalta que Tavares vive dessa comenda. Fazendo uns intervalos sobre outros assuntos em que invariavelmente se mostra pouco preparado, é sobre isso que escreve há anos. A obsessão com o tema não tem a ver com o seu empenho no combate a corrupção, apesar de esta ocupar provavelmente mais de metade dos seus textos. Nem sequer me parece que tenha a ver com Sócrates, apesar deste colunista carente de atenção dos seus pares lhe dever parte da fama. A razão é mais prosaica: sendo um tema popular, não exige o domínio de grandes questões políticas, demasiado “abstratas” ou técnicas. Isso, aliás, nota-se quando João Miguel Tavares se aventura em discussões sobre o Estado de Direito, atirando-se tão para fora de pé que o perdemos de vista na praia. Isso permite-lhe ser comentador na última página de um jornal de referência sem que se lhe conheça qualquer cultura política.
Nada disto me incomoda. Até já aqui escrevi que o acho razoavelmente eficaz neste mercado. Não aceito é que, em vez de se ficar pelos argumentos, por mais frágeis que sejam, continue a insinuar que quem não concorda com ele está a soldo de corruptos ou os quer proteger. O que não aceito é que alguém, para disfarçar a sua impreparação política para debates mais difíceis, lance lama sobre quem, como ele, apenas expressa as suas opiniões. Seja eu, o Ferreira Fernandes, o Paulo Baldaia ou o Pedro Marques Lopes, só para pegar naqueles de quem mais vezes tenta arrancar atenção. João Miguel Tavares diz, no seu texto, que eu não sou um idiota. Agradeço a distinção. Infelizmente, não a posso retribuir. Mas posso desejar-lhe que o caso Sócrates e suas derivações durem por muitos anos. Para que nunca seja obrigado a partilhar connosco alguma ideia política.
PS: Hoje, João Miguel Tavares dedica-me, pela 3873ª vez, parte do seu texto. Para, a propósito do Sporting, falar de... Sócrates. Respondo-lhe na próxima leva, daqui a um ano. É que, parecendo que não, sempre tenho outros assuntos a tratar.