LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Jornalistas raptados (um não vai poder andar meio ano) e uma questão para a polícia moçambicana: “Seria fácil investigar, não?”
É um país com uma sociedade civil e uma noção de liberdade mais robustas que noutros países africanos mas as ameaças, os avisos e mesmo a violência contra vozes críticas já não são exceções em Moçambique. Dois jornalistas amigos do comentador político Ericino de Salema, que foi raptado e agredido violentamente (não é caso único), falam ao Expresso sobre um país onde “nos últimos dois anos tem sido cada vez mais difícil convencer pessoas a vir falar”
Texto Ana França
Ericino de Salema dirigiu-se a 27 de março ao Sindicato de Jornalistas para almoçar no restaurante do edifício. Foi no meio do dia que foi atacado. De Salema é jornalista, advogado, comentador e ativista pela liberdade de expressão em Moçambique e, nesse dia, foi raptado e agredido. Depois de deixar o computador portátil no assento de trás do carro, de Salema foi abordado por desconhecidos e levado noutro carro para um lugar onde, segundo disse a STV, televisão na qual é comentador de assuntos políticos, terá sofrido violentas pancadas nos braços e nas pernas.
Na passada sexta-feira foi sujeito a uma cirurgia num hospital privado de Moçambique “mas não deverá caminhar pelo menos meio ano”, diz ao Expresso Jeremias Langa, coordenador do programa “Pontos de Vista”, onde de Salema costuma falar e que é um dos mais populares programas de análise política no país. Neste momento, de Salema está na África do Sul, em tratamento. Quando foi agredido já era um dos poucos comentadores que ainda iam ao programa, já que “nos últimos dois anos tem sido cada vez mais difícil convencer pessoas a vir falar”, diz Langa. Ericino foi abandonado na berma da estrada que circunda Maputo, perto de Marracuene, a oito quilómetros do centro da capital moçambicana. Quem o levou ao hospital foram os cidadãos que o encontraram. O mesmo tinha acontecido a José Macuane, em maio de 2016 - foi encontrado exatamente no mesmo sítio, baleado numa perna.
Parece que nos estão a dizer que há determinadas balizas que não podem ser ultrapassadas. Quais são exatamente não sabemos bem
Fernando Lima, presidente do conselho de administração da empresa que detém o jornal Savana e membro do Comité de Emergência para a Proteção das Liberdades (CEPL), também está habituado a “pressões, telefonemas anónimos, conselhos amigáveis entre aspas, avisos, ameaças”, diz ao Expresso a partir de Maputo, ao telefone. Esta segunda-feira reuniu-se com a procuradora-geral da República, Beatriz Buchili, para exigir que estes ataques sejam investigados. Veio de lá “encorajado” mas diz que a sociedade precisa de ação em vez de “palavras e intenções”.
“O facto de não ser a primeira vez que isto acontece está a deixar as pessoas cada vez mais apreensivas, principalmente entre os sectores tradicionalmente mais críticos. Há uma crispação notória. Parece que nos estão a dizer que há determinadas balizas que não podem ser ultrapassadas. Quais são exatamente não sabemos bem”, diz Lima. Ele mesmo já foi comentador do “Pontos de Vista”. José Macuane era seu colega quando tudo aconteceu e o episódio gerou uma intensa discussão entre os membros do painel do programa. “Depois de o Macuane ter sido agredido, perguntámo-nos se era para continuar mas decidimos absolutamente - absolutamente - que se vacilarmos estamos a dar razão a estas pessoas que ameaçam, que mandam recadinhos.” Quem substituiu José Macuane no “Pontos de Vista” foi Ericino de Salema.
A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), atualmente no poder, é o alvo da maioria das acusações mas Lima refere que “este governo tem sido muito mais enérgico na condenação deste tipo de crimes”. De facto, Filipe Nyusi, presidente da República de Moçambique, já disse que “o Governo tem estado empenhado, lado a lado com os profissionais da comunicação social, para a criação de um ambiente saudável de liberdade de expressão e acesso à informação, para a dignificação desta classe, construindo uma sociedade tolerante pela pluralidade de ideias”. Em Londres esta terça-feira, Nyusi admitiu que “os direitos humanos são desrespeitados no país” mas salientou que também existe liberdade de expressão.
A “energia” com a qual o governo parece estar a responder a este caso tem uma razão, de acordo com Fernando Lima - é que “todas as setas e holofotes se viraram para eles”. “Quando se trata de um traficante ou criminoso, se forem agredidos, as pessoas não ligam a violência diretamente ao governo, mas no caso de Salema e Macuane eles não eram nada disto, por isso as desconfianças estão lá”, diz.
Nenhuma pessoa, nenhum partido, nenhum poder consegue unanimidade. O próprio Jesus não foi unânime. Ele incomodou no seu tempo, porque dizia a verdade e a verdade incomoda
As queixas sobre intimidações a jornalistas e críticos do governo chegam não só das associações nacionais e internacionais de defesa das liberdades individuais - a última foi a Human Rights Watch, esta sexta-feira - como também de outros sectores da sociedade, como a Igreja. Numa conferência de imprensa após o ataque a de Salema, o presidente da Comissão Episcopal de Justiça e Paz (CEJP), que congrega bispos católicos de Moçambique, considerou “nefastos” para a democracia os atentados à liberdade de expressão no país. Luiz Lisboa assinalou que “nenhum cidadão deve sofrer represálias por exercer direitos e liberdades fundamentais”. “Nenhuma pessoa, nenhum partido, nenhum poder consegue unanimidade. O próprio Jesus não foi unânime. Ele incomodou no seu tempo, porque dizia a verdade e a verdade incomoda”, acrescentou. A rádio da Igreja Católica, rádio Encontro, também já denunciou alguns episódios de tentativa de censura. O último foi em janeiro de 2018, pouco tempo antes das eleições intercalares em Nampula, no norte do país, onde a concentração de forças da oposição (RENAMO - Resistência Nacional Moçambicana - em particular) é maior. O diretor da rádio, Benvindo Tápua, disse à Deutsche Welle que as ameaças começaram depois de a rádio ter denunciado que eleitores provenientes de outros distritos estavam inscritos em Nampula para votar no candidato da Frelimo.
“Moçambique não é como os outros países da região, aqui o processo democrático ficou bem enraizado, há liberdade de imprensa, de expressão, meios de comunicação privados e uma comunidade jornalística forte. É triste estarmos a retroceder”, diz Jeremias Langa que acrescenta que o episódio de violência contra de Salema “agudizou um clima de medo” que já existia e “vem mostrar que a intimidação se institucionalizou”. Devido àss semelhanças entre os ataques a Macuane e de Salema, Langa acredita que se trata de um “modus operandi” que se repete, o que mostra “uma motivação clara em intimidar duas pessoas específicas, ambas do mesmo programa”. Se houvesse dúvidas quanto às motivações do primeiro ataque, diz Langue, desfizeram-se agora. O jornalista diz ainda que este clima de suspeição não ajuda a sociedade civil a sentir-se segura, porque “até hoje nenhum destes crimes foi esclarecido e não há qualquer esforço das autoridades para o fazer”.
“Não há nada que se pode dizer, para o bem do próprio trabalho”, diz a polícia moçambicana
Langa tem pormenores para contar. “A primeira coisa estranha é que a vítima foi ouvida uma única vez, no hospital. Eu estava lá e quem o entrevistou foram dois polícias muito inexperientes, que nem falaram comigo apesar de eu ser coordenador do programa onde ele comenta. A segunda coisa estranha é que ninguém analisou as imagens das câmaras colocadas perto e dentro do sindicato dos jornalistas. E a terceira é que de Salema recebeu telefonemas a avisá-lo do perigo que corria e também recebeu outro a atraí-lo para o local. Seria fácil investigar estas pistas, não?” O jornalista deixa a pergunta no ar. Não foi possível confirmar estas informações junto das autoridades, apenas através de Lange e de mais um ativista que não quis falar mas que teve acesso à mesma informação.
O Expresso tentou contactar a Frelimo, mas não foi possível até ao momento obter uma reação. Também contactou, por telefone e email, a Procuradoria Geral, que não respondeu até ao momento. A polícia remeteu o Expresso para o briefing semanal com a imprensa, no qual é referido que não pode revelar detalhes da investigação. “Não há nada que se pode dizer, para o bem do próprio trabalho. São detalhes de investigação que não podemos aqui referir”, disse o porta-voz do Comando da Polícia da República de Moçambique da Cidade de Maputo, Orlando Mudumane.
Os referidos casos somam-se a outros assassínios mediáticos e que levaram no passado as vidas do jornalista Carlos Cardoso, em 2000, do economista Siba Siba Macuacua, em 2001, e do juiz Dinis Silica, em 2014. Carlos Cardoso foi assassinado quando investigava uma megafraude no ex-Banco Austral, enquanto Siba Siba Macuácuá foi morto quando tentava sanear as contas do referido banco. Por seu turno, Dinis Silica tinha sob a sua direção processos relacionados com raptos.