MÚSICA
Quando uma rapariga não pode ser ela própria, só quer chorar, chorar pelo mundo
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A Alicia Keys que conhecíamos desapareceu - quando a ouvimos pela última vez, com “Girl on Fire”, cantava êxitos pop nas rádios, ainda coberta de maquilhagem. No novo álbum, “Here”, Keys usa a sempre poderosa voz despida de filtros como “uma resposta ao mundo em que vivemos hoje” e mostra um lado político até agora desconhecido
TEXTO MARIANA LIMA CUNHA
Quando Alicia Keys percorreu há poucos meses a passadeira vermelha dos MTV Video Music Awards, a perplexidade foi geral. Algo se passava com a cantora – os nossos olhos demoravam a habituar-se e a identificar o que havia de estranho em Alicia, por comparação com todas as outras cantoras e convidadas que se deixavam fotografar. O rosto de Alicia parecia de facto diferente, mas não porque ela o tivesse adornado com nada de invulgar – pelo contrário, o que a estrela decidira fazer era livrar-se da maquilhagem e, com ela, das pressões que a indústria da música a fazia sentir desde que se tornou uma artista mundial.
Agora com 35 anos, a Alicia sem maquilhagem volta para apresentar o novo álbum, “Here”, em que adequadamente se mostra mais presente do que nunca e mais consciente dos tempos em que vivemos. Quando a maquilhagem saiu - não que ela não “adore cosméticos”, só não gosta de ser obrigada a “tapar aquilo de que é feita” -, uma nova consciência política e social tomou conta dos esforços artísticos de Alicia e entregou-lhe as ferramentas para escrever e cantar “Here”, álbum com que se distancia das baladas amigas da rádio que marcaram a sua carreira até agora.
“Quando uma rapariga não pode ser ela própria, só quero chorar, chorar pelo mundo”, anuncia Alicia, já o álbum vai a meio, em “Girl can’t be herself”. Desta frase surge muito do que ela quer contar-nos: ela quer falar das pressões que ela e todas as mulheres sentem, das divisões que enchem o nosso mundo, da discriminação que os afro-americanos e os homossexuais continuam a enfrentar, dos estragos que a espécie humana inflige à Mãe Natureza – tudo isto por uma simples razão, que volta uma e outra vez a ser cantada por Alicia: num ano como 2016, a diferença e o ódio tomam um lugar que devia ser da união e da esperança.
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O que estiver no escuro pode sempre tornar-se uma luz
Essa esperança chega a surgir – em “More than we know”, a artista deixa uma série de apelos (“Não há promessas por cumprir na terra prometida / Vamos deixar que a liberdade nos liberte de novo”) e fala da capacidade que temos de mudar tudo o que há de errado nos tempos que vivemos (“Se ficássemos no chão nunca veríamos as estrelas (…) Porque não há destino que não sejamos capazes de criar”). Mas esta nota de otimismo chega apenas numa segunda parte do álbum que parece mais desorganizada do que a primeira, concentrada em elencar esses problemas e tensões que Keys se empenha em denunciar.
O interlúdio “The beginning”, que abre o álbum com um piano dominante numa atmosfera ainda por estabelecer, dá espaço a uma espécie de declaração de interesses da artista, que vai passar as próximas canções a contar histórias de Nova Iorque – sobretudo a Nova Iorque negra -, de mulheres, de negros que constroem as suas histórias naquela “selva de cimento” onde, cantava ela em “Empire State of Mind”, os sonhos são feitos. “Sou Nina Simone no parque e Harlem na escuridão / Sou a energia errática que entra pela tua pele”, avisa ela, prestes a começar a sua tentativa de entrar nas peles de quem a ouve e de passar a sua mensagem.
A mensagem arranca bem no piano em crescendo e no rap inconformado de “The Gospel”, uma história linear que não pede grandes floreados. “Estou a dizer-vos as coisas como elas são, como é que vamos viver? Se não ganharmos dinheiro, como é que alimentamos as crianças?”, questiona Keys, deixando incentivos porque “a vida não é fácil”: “O que estiver no escuro pode sempre tornar-se uma luz / Se não estás a lutar, como é que vais ganhar a batalha?”. Acima de tudo, um anúncio importa e impõe-se em “The Gospel”: ela está apenas a “dizer os factos”, e é a isso que se compromete nas restantes 16 faixas.
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“Pawn it all” segue o tema inicial (“Aprendi da maneira difícil / Agora estou a fazer as coisas à minha maneira / Porque a vida é demasiado curta para cair em Nova Iorque”) e o primeiro dos vários interlúdios, “Elaine Brown” (uma referência à homónima líder do movimento afro Black Panthers, que também Beyoncé referiu no polémico videoclip de “Formation”, lançada este ano), deixa uma mensagem tão clara quanto sufocante: “Mãe negra, tenho de confessar que ainda respiro embora ainda não sejas livre / Uma bala instalou-se no meu cérebro, mãe negra”.
A inevitável conclusão
O tema da discriminação dos negros e das dificuldades que a comunidade passa, tão relevante num ano em que as tensões raciais nos Estados Unidos se extremam e o movimento Black Lives Matter ganha renovada importância, volta na sexta canção, a homenagem às suas raízes “She don’t really care_1 luv”, mais uma história de persistência e perda: “Ela cresceu em Brooklyn, ela cresceu em Harlem, ela cresceu no Bronx / Ela sabia que era uma rainha, ela vivia em Queens (…) Tu pensavas que ela estava à procura do amor, mas ela só queria que cuidassem dela” (e a inevitável conclusão: “A vida simplesmente não é justa”).
A consciência ambiental de Keys também aparece neste leque de problemas que a cantora identifica e quer corrigir em “Kill Your Mama”, a faixa que compôs ao lado de Emeli Sandé e que obriga para uma pausa para reflexão, quando abre com uma guitarra acústica crua depois do rap frenético e do piano mais duro que guia toda a primeira parte de “Here”. As palavras que a voz rouca e sem enfeites de Alicia canta importam, por isso ela quer que lhes prestemos atenção. “Que vergonha de nós, teus filhos e filhas”, canta, dirigindo-se à natureza, “colhemos todo o teu ouro e envenenámos todas as tuas águas / cada pedaço da nossa alma está à venda / Achamos que sabemos tudo, olha onde isso nos levou”. “Não haverá julgamento, mas as crianças serão testemunhas / Se estamos apaixonados pelo inferno, porque é que o céu nos havia de visitar?”
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A contrariar a crueza e a honestidade social e política da primeira metade do álbum chega a canção que o divide exatamente ao meio, “Blended family (what you do for love)”, uma faixa mais ligeira com um som pop que relembra outros tempos de Alicia e se destina a explicar o amor que sente pela família, numa declaração de paz e dedicação aos enteados, filhos do seu marido, o produtor Swiss Beatz. Também “In Common”, a canção que fecha o álbum, recusa categorizações de género e cria uma atmosfera mais pop, quase tropical, a fazer lembrar o som e o tema de “Too Good”, o êxito de Rihanna e Drake (e na mesma onda, “Work on it” é uma reflexão sobre o amor e o compromisso, explicando que “a dor é que nos faz construir a confiança”).
Porque é que os números numa balança são o meu Deus?
De resto, nesta segunda parte continua a haver espaço para a denúncia e a luta contra as injustiças – “Where do we begin now” parece o relato fiel dos obstáculos de uma relação homossexual, “Holy War” deixa as reclamações de fundo de Alicia a nu (“Se a guerra é sagrada e o sexo é obsceno / Está tudo distorcido neste sonho lúcido (…) Divididos pela diferença, sexualidade e pele”. Em “Girl can’t be herself”, um hino feminino para a autoconfiança e a autoestima, a melodia parece ligeira e contagiante mas a mensagem é bem clara: “De manhã, assim que acordo / Qual é o problema se não quiser pôr toda esta maquilhagem? Porque é que ser única é uma impureza? Porque é que os números numa balança são o meu Deus?”.
Não é a primeira vez que Keys se questiona sobre as pressões que as mulheres sentem, tendo negado há meses estar numa “cruzada contra a maquilhagem” – “costumava sentir a pressão para aparecer como a indústria da música esperava que aparecesse, mas já não a sinto”, disse à revista ELLE – e garantido que considera “louca” qualquer pessoa que não se identifique como feminista. “Isto é sobre a defesa dos direitos das mulheres no terreno político, social e económico”, lembrou depois de ter lançado o movimento #NoMakeUp, em que desafia as mulheres a deixarem de sentir a obrigação de “agradar” aos outros.
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“Here” parece o resultado de uma evolução que tem vindo a acontecer há anos, pelo menos desde o lançamento do último álbum, “Girl on Fire”, de 2012, em que Keys ainda se concentrava no soul e no pop tradicionais na sua carreira e em escrever êxitos diretos para as estações de rádio. Entretanto, Alicia Keys, artista, mãe, ativista e uma mulher com uma experiência muito diferente da menina que cantava “Fallin’” no início de tudo, cresceu e decidiu usar a sua voz para mostrar que há muito para fazer e muito para exigir até que a igualdade seja atingida para todos (resta saber se este grito de guerra é suficiente para se tornar o seu ponto de viragem, a mesma mudança que “Lemonade” representou na carreira de Beyoncé).
“Há um buraco no meu coração que tenho escondido / Tenho sido tão forte que agora estou cega/ Tenho rezado, mas estou a pagar pelos meus pecados / Vais dar-me um sinal antes de que enlouqueça?” A penúltima faixa, “Hallellujah”, é dirigida a Deus e a uma Alicia que tirou a maquilhagem que lhe cobria a voz e a deixou fluir sem amarras, por vezes presa pela frustração, outras vezes livre e cheia de esperança. É o grito de alguém que pede um mundo melhor (no concerto em que apresentou o álbum, em Times Square, pedia que dia 8 de novembro as pessoas votassem “pelo amor e para deitar os muros abaixo”) e que percebeu que a sua voz tem poder – e, novidade que nos chega com “Here, confiança - suficiente para começar essa mudança.