Estados Unidos

É como se houvesse “um manual para esconder a verdade”: os abusos sexuais por padres na Pensilvânia

Foto getty images

Foto getty images

A história repete-se, desta vez no estado norte-americano da Pensilvânia: um relatório de 1356 páginas regista 300 casos supostos de “padres predadores” sexuais em seis dioceses, que vitimaram pelo menos mil crianças e adolescentes, entre 1947 e o início deste século

Texto António Marujo

O padre jesuíta Thomas Reese, do Catholic News Service, uma das vozes que tem defendido a abertura de arquivos e a tolerância zero para com estes casos, afirmou que o documento deve ser um “alerta” para outras dioceses: os responsáveis devem contratar investigadores externos para averiguar tudo o que se passou até hoje e publicar os resultados.

Naquele que é talvez o comentário mais certeiro ao caso, Reese acrescentou, citado pelo jornal digital Crux: “Muitos bispos pensam: ‘Isto aconteceu antes de eu chegar aqui, lamento que tenha acontecido, mas já mudámos os procedimentos e já não está a acontecer.’” O problema, acrescenta, é que não se averiguou toda a sujidade, ao mesmo tempo. Se isso tivesse sido feito “não estaríamos a ser mortos com mil golpes”. O relatório da Pensilvânia é apenas mais um, depois de outros. “É a mesma história em todos os lugares.”

E de que consta a história? Desde 1947, até ao início dos anos 2000, em seis dioceses – Allentown, Erie, Greensburg, Harrisburg, Pittsburgh e Scranton –, onde há mais de 1,7 milhões de católicos, meio milhão de páginas de documentos internos, complementados com dezenas de vítimas registadas, permitiram chegar à conclusão de que mais de 300 padres terão abusado de crianças e jovens. Mas o júri que investigou o caso acredita que o número real de vítimas pode chegar à casa dos milhares – alguma documentação pode ter-se perdido e outras vítimas podem ter optado por não falar.

“Algumas vítimas foram manipuladas com álcool ou pornografia. A algumas, os agressores fizeram-se masturbar por elas ou manusearam-nas. Algumas vítimas foram violadas oralmente, outras vaginalmente, algumas por via anal”, regista o relatório, a partir dos documentos e testemunhos recolhidos.

Em todos os casos, a mesma política de encobrimento: os responsáveis “preferiram proteger os abusadores e a instituição, sobretudo”. O mais importante “não era ajudar as crianças, mas evitar o ‘escândalo’”. Por isso, as queixas eram mantidas em segredo, como se houvesse “um manual para esconder a verdade”.

Apagar todas as referências

A reação do atual bispo de Harrisburg foi intempestiva: Ronald Gainer deu ordens para que fossem removidos de quaisquer prédios, instalações ou salas da diocese todas as referências aos bispos que o antecederam desde 1947 e que estão na lista de encobridores.

Sábado passado, ainda antes da divulgação do relatório, que ocorreu na terça-feira, o mesmo responsável divulgou os nomes de 71 pessoas da sua diocese, acusadas de abuso sexual infantil: 37 padres da diocese, seis seminaristas, nove padres de outras dioceses e 16 membros de comunidades religiosas. Os nomes da lista foram também removidos de quaisquer cargos ou posições que eventualmente tenham na diocese.

Não haverá, no entanto, muitas pessoas ainda vivas: a maior parte dos casos são demasiado antigos. Mas, ainda assim, o relatório permitiu já a dedução de acusações contra dois padres, um da diocese de Greensburg e outro de Erie, envolvidos em abusos na última década em análise. Estão ambos indiciados e já suspensos das suas funções.

Igreja de Erie Foto Reuters

Igreja de Erie Foto Reuters

Citado pelo ReligionDigital, o procurador geral do Estado, Josh Shapiro, afirmou que o documento regista um “encobrimento sistemático por altos cargos da Igreja na Pensilvânia e no Vaticano”. Mas não especificou, de acordo com a mesma fonte, quem poderia estar implicado, no Vaticano, nesse encobrimento.

Numa posição oficial, a diocese de Scranton publicou também os nomes de 70 acusados, padres e leigos – incluindo pessoas que não são mencionadas no relatório. Ao mesmo tempo, manifesta o desejo de “garantir que nenhuma criança seja mais vítima de abusos e que nenhum culpado seja protegido”. A diocese de Erie apontou 34 nomes e os respetivos lugares de residência, acrescentando outros 31 acusados, mas que já morreram. O bispo, Lawrence Persian, escreveu diretamente às vítimas de abusos.

Foto getty images

Foto getty images

Em Pittsburgh, o bispo David Zubik já escrevera uma carta, lida nas missas de domingo, onde dizia que se encontrou com muitas vítimas e suas famílias, confirmando “o dano duradouro que o abuso causou nas suas vidas”. Há mais de 30 anos que a sua diocese tem políticas em vigor para responder a estes casos, garantia.

Os bispos responsáveis das dioceses implicadas reagiram de forma semelhante: dor, arrependimento, reafirmação da tolerância zero, apoio às vítimas. “É doloroso para quem quer que seja, em particular para os sobreviventes de abusos e suas famílias”, que estes casos tenham acontecido, diz uma declaração da diocese de Filadélfia – que, com a diocese de Altoona-Johnstown e as jurisdições católicas de rito oriental situadas no Estado, não foram investigadas, por já terem sido sujeitas a idênticas diligências anteriores. “Estamos profundamente magoados pela dor das vítimas e continuamos no caminho da cura.”

Todos sublinham, ao mesmo tempo, que nas últimas duas décadas já se fizeram progressos em ordem à transparência, tolerância zero e cooperação com as autoridades. O bispo de Harrisburg, Ronald W. Gainer, acrescenta: “Comprometemo-nos a prosseguir e intensificar as mudanças positivas, para garantir que tais atrocidades não voltam a suceder mais. Quero que as crianças, pais, paroquianos, estudantes, funcionários, clero e público em geral saibam que as nossas igrejas e escolas são seguras; não há nada mais sério que a proteção daqueles que atravessam as nossas portas.”

Alguém será ainda processado?

Um dos nomes importantes citado no documento é o do cardeal Donald Wuerl, de Washington: Wuerl foi escrevendo para o Vaticano sobre casos que lhe chegavam ao conhecimento e condenando os abusos como criminosos. Mas, ao mesmo tempo, o relatório acusa-o de ter permitido que o padre Ernest Paone, ordenado em 1957 e ativo até 2001, fosse transferido várias vezes, apesar de ser acusado de abusos, na década de 1960.

Esta terça-feira, o cardeal reagiu em comunicado, dizendo que o relatório confirma que ele agiu com “diligência, com preocupação com as vítimas e para prevenir futuros atos de abuso”. Ao mesmo tempo, manifestava a esperança de que “uma justa avaliação” do que fez “dissipará quaisquer ideias feitas de outra forma por este relatório”.

Como a maior parte dos casos já prescreveu ou já morreram abusadores ou vítimas, o relatório propõe uma série de alterações legislativas para que os abusadores que estejam vivos ainda possam ser acusados.

Este caso soma-se a vários outros que atingiram de forma grave muitas dioceses católicas norte-americanas em Boston, Los Angeles, Seattle, Portland, Oregon, Denver, San Diego, Louisville, Kentucky e Dallas. Em vários casos, como regista o Crux, foram pagas indemnizações milionárias às vítimas, que levaram à declaração de falência de quinze dioceses e três ordens religiosas.