ANÁLISE

No anticlímax de Lula, o Brasil pariu indiferença

Proibido estacionar mas não escrever: “O amor vai vencer o ódio, a democracia vai vencer o golpe. Lula

Proibido estacionar mas não escrever: “O amor vai vencer o ódio, a democracia vai vencer o golpe. Lula

Um país de dimensões continentais que vive aos soluços. Aos empurrões de quem é o preso do dia e quem é o absolvido da hora. Pela primeira vez, um Presidente da República está encarcerado e a maior parte da população assobia para o lado. Quando o mundo pensou que o Brasil ia parar, os brasileiros continuaram a caminhar. Mesmo que ainda não saibam bem para onde

Texto Christiana Martins, enviada a Curitiba

É preciso sair a correr, não perder tempo, Lula vai ser preso! Não é agora, é mais um minuto, espera um bocadinho. Ele está em São Bernardo do Campo, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos. Chegou à janela, deu adeus. Olha lá o Lula! Vai falar. Ainda não, ainda não é agora, espera mais um bocadinho. Olha, está a falar — “eu já não sou um ser humano, sou uma ideia”—, é um discurso histórico. Está a mandar queimar pneus, diz que vai reproduzir-se entre a população, que serão milhões. Sábado são milhares em São Bernardo. Mas isso vai crescer. Não vai mais parar, agora é que é.

Não dá para esperar. Ele vai se entregar, os militantes do Movimento dos Sem Terra (MST) não o deixam sair. Voltou para dentro. Será que já almoçou? Acho que está a passar mal, ainda tem um ataque do coração. Olha que não, vai se entregar. Está a sair. Vai para o helicóptero e depois vai de avião até Curitiba. Agora é que é mesmo, não podemos hesitar. O Brasil vai rachar de vez. Olha, a violência está nas ruas, a polícia já fez explodir gás lacrimogéneo à porta do edifício da Polícia Federal, onde Lula ficará preso. Há correria, isso vai acabar mal.

Sexta, sábado, domingo. Amanhecer segunda-feira em Curitiba. Dia de sol, de calor manso no ar. O batuque de tambores é a primeira coisa que se ouve ao chegar ao acampamento “Lula Livre”, com centenas de apoiantes do ex-Presidente brasileiro, preso por corrupção e lavagem de dinheiro. Há sempre que cantar. Não se pode parar. A seguir ao almoço, o povo de Lula parece animado. Canta e grita palavras de ordem em apoio ao Presidente-metalúrgico. Um dos deles foi preso e eles têm de mostrar que não o deixam cair sozinho. Ok, os apoiantes de Lula estão lá e dizem que vão ficar. A pena é de 12 anos e um mês...

Mas a imensa maioria dos 1,8 milhões de habitantes da cidade de Curitiba finge que não os vê. O percurso até ao bairro Santa Cândida — zona de classe média envelhecida onde Lula se encontra preso — é mais do que tranquilo, é um passeio. Ainda por cima, equilibrada e planeada, a cidade não tem problemas de trânsito, os carros fluem, não se vê nenhum acréscimo de policiais pelas ruas, seja no centro, seja na periferia, onde Lula se encontra preso. Não há faixas nem graffiti nas paredes. Parcas bandeiras do Brasil, presas nas janelas dos edifícios mais altos, revelam o apoio da classe média ao juiz Sérgio Moro, o rosto da operação Lava Jato, que já deteve cerca de 180 pessoas envolvidas em processos de corrupção.

Foto Reuters

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Sem fita cola possível

Rachado, o país, mais do que dividido, está partido, aparentemente sem fita cola capaz de o remendar. Há famílias que já não se reúnem nos Natais e filhos que não conversam com os pais, muitas vezes com os mais velhos a serem mais revolucionários do que os representantes das camadas juniores. Mas como é preciso sobreviver, quando não há diálogo possível surge o silêncio e o afastamento. E assim, quando a conversa aquece, vamos é falar do Mundial de Futebol na Rússia, que até se está a aproximar. Olha que é melhor. É, sim.

É por isso que nas conversas de rua e de café a maior excitação parece vir da exibição da série “O Mecanismo”. Ou seja, a recriação ficcional da operação de investigação que revelou a dimensão e deu nomes e rostos a um Brasil corrupto há muito intuído mas nunca desmascarado a tão alto nível. Mas também nestas conversas a parcialidade do brasileiro emerge, os do PT queixam-se dos erros na reprodução de Lula da Silva e Dilma Rousseff e os partidários de Sérgio Moro acusam a produção da série de deturpar factos.

Mas e a violência? Pois, não houve, não há e não deve haver. Como assim, não vai haver convulsão social? A verdade é que os anos de Governo do PT, as opções tomadas, as alianças parlamentares feitas com bancadas como os evangélicos esvaziaram a capacidade de mobilização do partido junto da classe média.

A imensa classe média brasileira, também ela tricotada entre preconceitos e sonhos de ascensão social, também ela inundada de rejeição das classes sociais desfavorecidas — “cheira a pobre“, é um comentário recorrente —, desmobilizou-se. Em 2013, as manifestações encheram os olhos internacionais, mostrando um país reivindicativo e cheio de pujança nas ruas. Desde então, a situação social, económica e política só se degradou e nunca as ruas pareceram tão vazias. Porquê?

Porque o preço do bilhete do autocarro comove mais o coração daquela classe média do que a prisão de um ex-Presidente ou a manutenção no governo de um Presidente com atos de corrupção provados, como Michel Temer, protegido pelo que os brasileiros chamam “foro privilegiado”, ou seja, desde que poderoso, inatingível. E já agora, os que engrossam as fileiras das classe mais baixas não têm tempo para manifestações, têm de apanhar três autocarros e um comboio para chegar a tempo de colocar o café da manhã para a patroa.

Foto Getty

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Impávida e serena

E assim Curitiba segue impávida e indiferente à prisão de Lula, com um romântico acampamento de algumas centenas de militantes (200? 300? 500?) a assentarem arraiais à porta de moradias de classe média, sem lugar para tomar banho ou cozinhar decentemente. É ali, em duas ruas, que o coração do PT parece continuar a bater. Mas sabe a pouco. Ocupados com palestras políticas, visitas diárias de responsáveis da oposição, ações culturais, os militantes do acampamento passam os dias entre o cumprimento matinal a Lula e o cair de mais uma noite, sem avanços reais em termos de reivindicação.

Entretanto, os agentes da Polícia Militar observam, de metralhadora em punho, entre anedotas e copos de refrigerante deixados pelos moradores pró-Moro. E os mais bonitos tiram selfies com a população. Tudo é personalizado, tudo é partidarizado. “Lula, vagabundo!”, gritam uns. “Moro é brilhante!”, sublinham outros. A maior parte, contudo, não diz nada, segue em frente como se nada estivesse a acontecer.

As sondagens eleitorais dizem que, embora perdendo votos, Lula continua com quase o dobro das intenções de voto (31%) do segundo concorrente, o ex-militar e representante da extrema direita Jair Bolsonaro. Nos media, a orientação é abafar o ruído, passar a prisão de Lula para segundo plano, normalizar a situação. O PT tenta reagir, marcar agenda, continuar a mexer-se, mas como o Brasil não assegura a audiência pretendida, envia representantes a Portugal em busca de ressonância.

Porque, no Brasil, a morte de Marielle parece comover e unir mais do que a prisão de Lula. E mesmo os jornalistas nacionais destacados para acompanhar a prisão do ex-Presidente entretêm-se no café da esquina do edifício da Polícia Federal com sumos de maracujá e pão de queijo enquanto nada de relevante acontece. Na quarta-feira Lula podia ser solto, os juízes do Supremo Tribunal Federal iam julgar uma liminar, em Brasília. Afinal, já não vão. Afinal, vão é julgar o habeas corpus do ex-ministro das Finanças e delator de Lula António Palocci. Afinal também não, fica para amanhã. Não saiu. Não sai ninguém.

Foto Getty

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Mas olha que a qualquer momento chegam 40 autocarros a Curitiba com militantes para engrossar o acampamento “Lula Livre”. Tenham calma, não se esqueçam de que o Brasil é um país de dimensões continentais e que do Pará a Curitiba podem ser quatro dias de viagem. Eles ainda estão a vir. Vão chegar, mas demoram. E as visitas da presidente nacional do PT ao acampamento repetem-se dia após dia. E Ciro Gomes, candidato à Presidência que poderá ser a salvação da Esquerda, nunca mais chega. Parece não se querer aproximar muito de Lula para não ficar colado à imagem do ex-governante.

E Lula? Ficará satisfeito com o “bom dia” diário dos militantes fiéis, com o acampamento da liberdade ou estará preocupado com a falta de gritos no asfalto? O que pensará o ex-Presidente, fechado na sua sala de 15 metros quadrados com casa de banho privativa? O homem que o operador aéreo classificou de lixo no dia em que o transportaram para Curitiba, dizendo ainda que nunca mais o devolvessem a São Paulo, ressuscitando desta forma traumas da ditadura militar, altura em que representantes da oposição eram atirados de aviões sobre a Baía de Guanabara.

Brasil, um país entretido com fantasmas, ocupado com séries televisivas, desatento dos problemas de fundo, alheado da capacidade reivindicativa de uma população quando inunda as ruas. E agora que um ex-Presidente foi preso, o que de pior pode acontecer? Prendê-lo outra vez por outros processos? Prender outros políticos e empresários? Mas já mataram uma vereadora no Rio de Janeiro! Sim, lamentável e muito triste e as pessoas até foram para a rua, no país e não só. Mas e agora? As eleições são em outubro. Sim, e até lá? Pois, não dá para adivinhar, só se sabe que não vai ser fácil, que o país vai continuar a soluçar, a balançar, tomara que não caia. Não vai cair. Mas não se esqueça, prognóstico só no fim do jogo.