Opinião

João Garcia

Para o Adelino Cardoso

Adelino,

Na redação do Popular, onde te conheci, várias vezes me disseste que o importante eram os factos, não as opiniões, e que os jornalistas não eram protagonistas das histórias. Na época, estavam a acabar-se os anos 70, quase ninguém dizia comunicação social. Era de jornalismo que se falava. Tu insistias na procura da objetividade e eu, que queria mudar o mundo, ouvia com dificuldade: os factos são sagrados, os jornalistas são apenas quem os conta, deixa a opinião para os outros – dizias.

Nem sempre te fiz a vontade. E hoje volto a contrariar-te. Primeiro, porque o facto que tenho para relatar não será dos mais relevantes. Deixaste-nos, o teu funeral foi há bocadinho, e poucos serão os que sabem que houve um Adelino Cardoso. Mas afinal, e como já alguém disse, o jornalismo também é isto - dizer que o Lord John morreu a quem não sabia que ele estava vivo. Depois porque sempre achaste que as nossas opiniões não deviam ocupar espaço, e eu aqui estou a escrever sobre ti. Terceiro porque achavas que os jornalistas não mereciam destaque e eu penso que tu mereces.

Lembro-me de ti a protestar quando os jornalistas ligados a partidos de extrema esquerda queriam controlar a redação do Diário Popular; recordo como reagiste quando os do PCP procuravam recuperar as posições perdidas; lembro-me bem dos discursos inflamados quando chegou a vez do PS querer controlar o jornal e jamais esquecerei o papel que tiveste quando a AD , o PSD coligado ao CDS, acharam que tinha chegado a hora de meter a rapaziada na ordem.

Protestar era contigo. E como protestavas. Explodias.

Explodias na Assembleia da República, na bancada de imprensa, e várias vezes os deputados se calaram, surpreendidos com as tuas interjeições. O Henrique Monteiro recordou aqui, ontem, quando chamaste mentiroso a um parlamentar. Eu lembro-me bem de uma vez que fomos os dois para S. Bento, tu para trabalhar e eu para tentar aprender, e mal a sessão tinha começado já tu a estavas a interromper. Nós tínhamos ido porque o debate prometia e, lá chegados, deparámos com uma sessão sobre inaugurações de fontanários, mercados e coretos.

Na Assembleia conheciam-te desde os tempos em que se chamava Nacional e a que só os deputados da Ala Liberal davam cor. Era um orgulho ver como te respeitavam os nossos deputados - os democráticos, porque quando cheguei aos jornais já os outros tinham partido.

Também fizeste jornalismo económico. Nunca te vi, e estive muito tempo a teu lado, confraternizar com sindicatos ou patrões. O que procuravas era a verdade e ai de quem ta negava.

Vivi contigo dia a dia durante anos. Almoçámos muitas vezes nas tabernas do Bairro Alto, quando elas não estavam na moda. Saíamos do jornal com o prédio a vibrar, sacudido pela rotativa que imprimia o nosso trabalho, e íamos ao peixe cozido saído da Ribeira. Regressávamos já a calma tinha voltado à Luz Soriano, já o Popular e o Lisboa ( a Capital era na travessa do Poço da Cidade) andavam nas carrinhas de distribuição. Às vezes, íamos a uma outra tasca jogar um pouco de dominó belga ou bater umas cartas. King, não era?

Fomos a alguns concertos (na altura não havia muitos e o dinheiro era pouco) e passámos muitos fins de semana juntos. Mas reparei ontem, quando estava à conversa com a tua filha Mónica, que nada sei de ti.

Fizeste a tropa no regimento disciplinar de Penamacor. Porquê? Nunca me contaste. Questões da política, ao que sei. Nasceste no Porto e começaste no Primeiro de Janeiro. Não sei como vieste para Lisboa, mas contaste-me que tinhas entrado no Popular selecionado num concurso. Nada de cunhas, que compadrios, pedidos, favores e outras coisas que estragam a independência não eram contigo. Intransigente até mais não. Fizeste bem.

E discreto, que importantes eram os factos, não nós. Por isso, calculo eu, falavas pouco de ti.

Não sei a quantos ensinaste antes de chegar a minha vez. Sei de muitos que me seguiram e que ainda hoje provam que tiveram bom mestre.

Adelino, chega de falar de nós. Vamos aos factos: morreu um grande jornalista, morreu um grande homem.