SNOB, 50 ANOS
Bifes, jornalistas e outras histórias
Foi refúgio de jornalistas, políticos, cineastas e de muitas outras personagens que durante cinco décadas fizeram deste espaço um lugar único em Lisboa. No próximo domingo, dia 16, o Snob comemora cinquenta anos. Em memória da casa, o Expresso recolheu testemunhos de alguns dos seus fiéis frequentadores
TEXTO ANA SOROMENHO FOTOS PAULO PETRONILHO
Na aparência é um bar escondido na descida da Rua do Século, com uma portinha verde, discretamente iluminada, e uma campainha, também discretamente posicionada, onde se tem de tocar. Albino Oliveira, “o senhor Albino”, como é tratado por toda a gente, é quem abre a porta. Entramos, empurrando o reposteiro de veludo pesado. Mais uma vez revemos a sala: as mesas baixas, com pano verde e candeeiro de cabeceira, os sofás de couro largos e confortáveis, o cheiro a fumo da véspera. Nas paredes há armários de madeira envidraçados com garrafas. Um deles está cheio de livros, em homenagem aos escritores da casa: José Cardoso Pires, Helena Sanches Osório, Pacheco Pereira, Mário Zambujal, Miguel Sousa Tavares…
NO PRESENTE O Senhor Albino é um anfitrião reservado e silencioso que guarda os segredos da casa. O Snob só fecha dois dias por ano: na noite de Natal e na véspera
Sentamo-nos ao balcão procurando histórias. Em meia dúzia de frases, Albino Oliveira traça o percurso deste bar/restaurante. Foi inaugurado no dia 16 de novembro de 1964, por iniciativa de Paulo Guilherme D'Eça Leal, maçon, ilustrador em vários jornais, que resolveu abrir um bar inspirado nos clubes ingleses, com horários tardios e “bife à café”. Foi o primeiro no género e rapidamente se tornou no refúgio preferido da malta dos jornais que, naquela época, estavam quase todos sedeados no Bairro Alto. Dois anos depois, vende o Snob a Adriano Oliveira, irmão mais velho de Albino. Este só começou a trabalhar no bar em 1974, tornando-se sócio em 1990. A decoração manteve-se e o horário também – todos os dias, das 16h às três da madrugada.
NO PASSADO Adriano Oliveira comprou o Snob em 1966. Um dos clientes lendários da casa, o advogado João Camossa, tinha um copo especial para beber a sua aguardente. A dona Maria, a única mulher da casa, foi quem preparou ao longo de décadas os famosos “bifes à Snob”
Até à década de setenta só podiam entrar casais ou grupos mistos. A gravata era obrigatória. Ao menu foram acrescentadas as omeletas, tostas, pregos e cachorros (o cozido e as salsichas só viriam depois).
O Snob foi desde sempre casa de jornalistas – “mais frequentado do que o próprio Clube dos Jornalistas, na Rua das Trinas. Muitos dos jornais que surgiram depois foram pensados nestas mesas”, diz com orgulho Albino Oliveira, acrescentando que não houve um único político, crítico, artista de teatro ou cineasta que não tenha passado pela casa.
E histórias? O senhor Albino reserva-se. É um homem discreto, de parcas palavras. Aqui e ali, vai soltando pequenos episódios, fragmentos que lhe vêm à memória: o dia em que Pinto da Costa bateu à porta para lhe entregar uma medalha de bronze do Futebol Clube do Porto, a ele, ferrenho adepto do FCP; Carlos Mota Pinto e Francisco Lucas Pires sentados ao fim da tarde na primeira mesa da segunda sala; a noite em que Daniel Oliveira e Vasco Pulido Valente, cada um na sua mesa, começaram a cantar à desgarrada uma canção revolucionária cuja letra só eles conheciam de cor; Jorge Sampaio, que durante um período apareceu sempre por volta das oito da noite para conversar com jornalistas e, pouco depois, anunciava a candidatura à Presidência da República, etc.
De todos os Presidentes, só Cavaco Silva nunca lá entrou. E só a uma pessoa a entrada terá sido recusada: Carolina Salgado, ex-mulher do presidente do FCP. Disseram-lhe: “temos a casa cheia”. É uma história que se conta, o senhor Albino não confirma nem desmente. “Esta casa é dos clientes. São eles que têm de contar as histórias do Snob.”
Sou um Snob
Francisco José Viegas
Escritor
“Comecei a frequentar em 1985. Na altura, fechávamos a edição do “JL” à sexta-feira, tinha 23 anos, era um miúdo e ia sendo adotado por um grupo de frequentadores que admirava e com quem crescera. Só em 1987 me tornei mesmo um frequentador. Para se ir ao Snob era preciso pertencer a um grupo. De fora, pensavam que se tratava “do grupo do Snob”, mas lá dentro havia tradições, hábitos, hierarquias, desavenças e segredos — vários grupos sob a tutela disciplinadora do Sr. Albino (e, antes, do Sr. Oliveira). Os meus grupos no Snob foram sempre os mesmos, sem oscilações. Infelizmente, alguns deles já morreram, como o Luís Pignatelli, o Eduardo Guerra Carneiro, o Carlos Plantier, o César Camacho (que levava o seu pão alentejano).
O horário era sempre pelas das dez da noite. À sexta-feira, o gang do Expresso aparecia depois da uma da manhã, para sair entre as 2h e as 5h. Acabei por levar muita gente ao Snob. Havia editores estrangeiros que rejubilavam com aquele ambiente, julgavam que já não havia sítios assim na Europa, onde pessoal de esquerda e de direita se reunia à volta de comida, bebida e fumo, sempre aos berros, sempre em discussões, sempre com finais agradáveis (é mentira, houve várias cenas de pugilato).
Uma vez, fui com a Margarida Rebelo Pinto, que me tinha pedido para ir lá, porque gostava de “ver aquela fauna do Snob”. Levei-a. Ela é minha amiga. Sentámo-nos na “caserna” (à entrada) a jantar, perante o silêncio do resto da sala, entre o curioso e também um nadinha de despeito, do género: “O que é que lhe passou pela cabeça?” A Margarida notou e foi ficando constrangida. A certa altura resolveu o problema despindo o casaco. Tinha um vestido mais justo e, levantando o peito, perguntou: “Gostas? São novas.” Não sei se estão a ver o efeito que isto causa numa “caserna” de gente exigente quando recebe alguém pela primeira vez. Foi tão devastador que, daí a quinze minutos, havia uma grande confraternização anarquista pela sala fora...”
Inês de Medeiros
Atriz e Deputada
“Nem me lembro a primeira vez que lá entrei. Certamente não teria idade para frequentar, mas era o sítio a que o meu pai ia quando estava em Lisboa nos anos em que viveu em Viena. O Snob tinha, e tem, aquela coisa extraordinária de cruzar todo o tipo de pessoas e de gerações no mesmo espaço. As grandes estreias sempre foram lá festejadas e, a certa altura, estava com estrangeiros numa mesa de gente de cinema, eles começam a olhar em volta e ficam muito espantados: “Mas aquele não é o Mário Soares, o vosso Presidente da República?” Respondemos com o ar mais normal deste mundo: “Claro que sim, vem cá muitas vezes”.
Para mim, este é verdadeiramente o lado bom da sociedade e da democracia portuguesa. Ainda existe uma informalidade e uma humanização que também passam por haver a possibilidade de todos se encontrarem em sítios como o Snob.”
José Manuel Barata Feyo
Jornalista
“Ainda me lembro de ver aquela malta do PS que descia do Rato - o Soares, o Zenha, o Alegre - aos grupinhos de dois ou três, de braço dado até à Rua do Século. Mal cheguei do exílio, em Paris, logo a seguir ao 25 de Abril, comecei a frequentar o Snob. Escrevia para alguns jornais portugueses. Lembro-me bem de lá ter entrado pela primeira vez na véspera de uma das viagens a Paris, e precisava de dinheiro. Naquela altura, quando os jornais entregavam um cheque à sexta-feira e não se conseguia levantá-lo antes do fim de semana, o senhor Oliveira facilitava-nos a vida: adiantava-nos o dinheiro, e guardava o cheque até segunda-feira.
Quando trabalhava na Informação da RTP2 ia lá todas as noites. Na altura só havia os bifes e tostas, e eu consegui introduzir variantes no menu. Por exemplo, a ideia do cozido à portuguesa à sexta-feira é minha. Assim como as salsichas de Frankfurt, que a minha mulher trazia diretamente da Alemanha, porque era hospedeira da TAP. Também fizemos muitos jantares de lebre, quando eu o Miguel (Sousa Tavares) chegávamos da caça e entregávamos uma peça para ser cozinhada.
O melhor e o pior do jornalismo devem alguma coisa àquele espaço. No dia do mandado de captura ao Duran Clemente, um dos militares de abril, estava eu no Snob com a malta do costume - o Orlando Raimundo, o Carlos Oliveira, talvez também lá estivesse o António Ribeiro Ferreira - e entra ele por ali dentro muito aflito. Achou que no Snob estaria a salvo e fez logo ali, em frente aos jornalistas, um discurso de pré-defesa.
Ainda hoje gosto daquela coisa soturna, aquele pequeno toque de pub irlandês. A ação do último capítulo do livro que estou a escrever passa-se lá e assim lhe presto homenagem.”
João Botelho
Cineasta
“Houve uma época em que andava tudo intrigado por causa do “lóbi do snob”. Aquilo era um grupo de amigos todos do Benfica, chegávamos uns vinte ou trinta, ocupávamos as mesas todas da segunda sala, foi na fase em que o Jorge de Brito era o presidente do Benfica e nós íamos para lá. Aquilo era muito engraçado, falávamos em voz alta, cruzávamos informação e contra-informação, discutíamos a estratégia do clube. Muitos jogadores foram falados e contratados ali dentro. E depois cada um pagava a sua conta. Mas começou a gerar-se um grande mistério sobre o tal “lóbi do Snob” e a aparecerem coisas escritas nos jornais. Até o Pinto da Costa quis ir conhecer o bar e foi lá espreitar... Também havia gente do cinema a pairar por lá... Mas isso já são outras histórias.
Pedro Mexia
Escritor
“Durante um período fui quase de ida diária. Foi nos anos da Cinemateca. Saia bastante tarde e havia sempre a hipótese de encontrar gente. Aquilo era uma mistura de ambiente de clube inglês onde se acabava sempre puxado para as outras mesas. Como não tenho anticorpos com jornalistas, ia sabendo dos bastidores das notícias que se publicavam, o que era muito curioso, era uma espécie de extras que vêm junto com o filme.
Foi um dos poucos sítios que frequentei regularmente onde praticava essa dimensão de tertúlia. Eu achava muito engraçado observar como toda uma certa Lisboa tinha passado por ali, perante o olhar sempre impassível do Senhor Albino. Gostava muito disso, nele. Tudo lhe passava pelos olhos: políticos, romances, dramas.. e tudo lhe era mais ou menos irrelevante, fosse qual fosse o assunto. Nessa altura, quando comecei a lá ir escrevi uma crónica no DN que lhe era dedicada. Chamava-se o Senhor Albino e começava assim: “Há quem deteste o Snob. Por causa da clientela, obviamente....”
Miguel Sousa Tavares
Jornalista
“Comecei a ir ao Snob arrastado pelo Barata Feyo, quando estávamos na RTP. Só ia às sextas-feiras no dia do cozido. Na altura era cliente do Procópio, e achava aquilo meio deprimente, uma espécie de clube de vencidos da vida... Os vencidos da vida, os velhos tipos das redações... Na verdade tudo aquilo exercia alguma atração. Em vinte anos, só fui uma vez para a sala lá de dentro - e era como se estivesse sentado noutro bar. Lá dentro não havia nenhuma relação com o exterior, nem uma única janela por onde se espreitar. A campainha tocava, a mesa da entrada estava sempre cheia, e mal uma pessoa entrava era logo fuzilada. Havia sempre uns que não falavam com outros e tudo isto fazia do Snob o charme da decadência. Lembro-me por exemplo da história do Luciano Alvarez, ao chegar da viagem daquela célebre polémica do Sócrates ter fumado no avião. Quando apareceu no Snob foi logo aniquilado pela classe, onde a maioria são fumadores.
Quando comecei o namoro com a minha mulher, a Teresa Caeiro, fui lá cear no dia em que cheguei do Brasil, e combinámos que ela aparecia depois. Ainda estávamos numa fase clandestina. Quando ela entrou, fingiu que vinha encontrar-se com o Barata Feyo, que estava na nossa mesa. Foi assim que iniciámos um romance secreto, no lugar menos clandestino de Lisboa.”
Felícia Cabrita
Jornalista
“O Snob está ligado a uma memória muito forte e a lembranças impossíveis de apagar. Foi ali que conheci o Torcato (Sepúlveda) e todos os anos, no dia do aniversário da sua morte, eu e a nossa filha Maria vamos lá jantar, para o mantermos presente.
Mais do que um bar, o Snob era uma grande família, na qual os clientes eram os donos da casa e o senhor Albino uma espécie de mordomo, diplomata e discreto, que ia acompanhando as mudanças. Aos 17 anos, já lá estava. Aquele tempo foi um tempo de fazer. Radical. Os princípios eram a solidariedade e a amizade e no meu grupo pontuava o Luís Pignatelli, o Celestino Amaral, o José Quitério, grande figura, veterano do jornalismo e da casa. Ali o que prevalecia era a discussão do mundo, do jornalismo e da verdade - e a verdade era um processo revolucionário. Todos nós éramos muito provocadores e vivíamos no limite da provocação.
Muitas vezes saíamos de lá depois das quatro da manhã, e não me lembro de me imporem uma hora de saída. Até nisto o Albino era diplomata”.