O POEMA ENSINA A CAIR

UM BOM POEMA É COMO OUVIR UMA CONVERSA ÍNTIMA

Para Frederico Pedreira, um poema podia e devia ser isto: um homem ou uma mulher que se aperaltam horas a fio ao espelho, mas no fundo não têm para onde ir. Ao Expresso Diário o poeta, sentado no palco do teatro A Barraca, em Lisboa, traçou um rumo num fim de tarde de chuva com versos dele e de António Manuel Couto Viana.

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

“É sempre com este medo de dizer
que me apresento, na vergonha
de umas mãos metidas para dentro
à procura desse abismo de pele
côncavo e azul.”

Tem trinta e um anos, três livros de poesia publicados e um outro, muito recente, que é de contos mas que também pode ser um romance, as opiniões dividem-se. Frederico Pedreira (1983) começou a escrever por causa da música, “uma canção dos Velvet Underground ou do Bob Dylan é para mim muito mais cativante do que um determinado poeta”, até porque não tinha muitos livros em casa, mas música sim: “uma das recordações mais vivas e que me marcaram foi o facto de o meu pai à noite, quando eu me levantava, estar a ouvir Simon and Garfunkel ininterruptamente.”

Só mais tarde leu escritores que hoje considera fundamentais, “tirando aquele estado de êxtase do liceu depois de conhecer alguns poemas do Pessoa ou do Cesário”, e fê-lo pela mão da primeira namorada: “falava-me de umas coisas, palavras repetidas, Al Berto, Assírio, Alvim, e eu ficava sem perceber a razão daquele entusiasmo todo - o que é que se passava para ela ficar tão contente?” A namorada apresentou-lhe alguns poetas da Assírio e Alvim mas outros escritores chegariam mais tarde, no início da faculdade, da segunda faculdade e do segundo curso superior em que se inscreveu.

No final do liceu estudou para entrar em Ciências Musicais, tarefa difícil porque era necessário “tocar umas peças de Bach, ler música, e saber um bom bocado de história da música para fazer a candidatura”. Fechou-se em casa, aprendeu o que era suposto, e entrou. Queria ser musicólogo, compositor, “aprender como se faz e como se fez, e mergulhar nessa tradição para depois conseguir sair dela vivo, como se passa com a escrita”.

Acabou por desistir “porque aquilo era muito pesado em termos teóricos”, tão pesado que em vez de ir às aulas passava algumas tardes a “tocar no piano que eles tinham lá para os alunos”. A teoria musical dava-lhe um “grande bocejo” e acabou por desistir.

Inscreveu-se depois no curso de Ciências da Comunicação mas “a coisa não era ser jornalista”. Queria pôr em prática “uma certa ideia de esse ser um caminho para chegar à escrita”. Acabaria por lá chegar já depois de, durante o curso, ter conhecido outros autores através de um colega: “ele falava-me de personagens que para mim eram inusitadas e loucas. Contava-me histórias do Luiz Pacheco, que eu mal sabia quem era, e do António Gancho”. Sublinha a importância de ter lido naquela altura os chamados escritores malditos, e o amargo de boca que essa aprendizagem tardia também trouxe. “Quando o meu colega me via a ler Mário de Sá-Carneiro ou Erasmo de Roterdão, perguntava-me: mas ainda estás a ler isso? Uma crueldade que me magoou mas que me abriu algumas portas de leitura, principalmente o Celine e o Lobo Antunes”.

Aos 14 anos já escrevia registos diarísticos que eram “uma espécie de terapia, como uma desaceleração do pensamento para ter uma perspetiva um bocadinho mais analítica em relação à confusão interior”, e pouco tempo depois começou a enviar manuscritos para as editoras, que eram “constantemente rejeitados”.

Parou então de escrever e foi ler: “acho que foi um movimento interessante, começar a perceber o que é que as pessoas da minha idade ou mais velhas, além do cânone, andavam a fazer. Foi nessa altura que a poesia do Manuel de Freitas foi importantíssima para mim, por perceber que a poesia podia ser um gesto de liberdade.”

Para Frederico Pedreira a escrita assume esse gesto de liberdade, também porque sendo inspirada noutros autores tem depois uma voz individual que explica assim: “eu acredito que essas pessoas servem para nos inspirar e meter no caminho certo, mas que esse caminho certo tem um prazo de validade. Devemos respeitar os autores favoritos mas ao mesmo tempo estranhá-los. Estranhar no sentido mais humano possível. Porque é que esta pessoa fez isto?”

Por falar em perguntas, recorda o dia em que lhe fizeram a pergunta mais “inusitada e ao mesmo tempo engraçada” sobre o facto de escrever poemas:

-  Mas escreves poesia, é?
- Sim.
- És sensível, é?
Riu-se e foi ao bar buscar uma cerveja.

A poesia serve para quê?

Para nos livrarmos, nem que seja por uns segundos valentes, da noção de utilidade. E de outras que lhe são parasitas: valor, mensagem, aperfeiçoamento, razoabilidade.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

Para mim, são estes: «Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de/Dizer aos meus amigos aí de Londres,/Que embora não o sintas, tu escondes/A grande dor da minha morte.» E por aí fora (o resto já não vem de cor, sejamos justos).

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Complicado. Isto porque a convivência entre os termos “poeta” e “português” é, por si, estranha. A estranheza que esta convivência me provoca é transversal à primeira resposta. Comunicar alguma coisa é um incidente ocasional no poema. Quando pensamos em “nacionalidade” e “língua”, pensamos em comunicar. Mas a poesia é um gesto (a mão que mendiga, que acena, que esmurra, etc.) A coloração que se atribui a esse gesto é indiferente. O mesmo já não se pode dizer do estalo da língua.

Um bom poema é...

Parece-me que é como ouvir uma conversa íntima atrás da porta e compadecermo-nos com o ponto de vista de um dos falantes. Ou como vermos uma pessoa a jantar sozinha num restaurante. Vermos o que faz enquanto o prato não chega, o que faz com as mãos, a sua coragem em enxotar o rumor do mundo. Em suma: o bom poema é aquele que nos deixa ouvir uma conversa que o poeta tem consigo mesmo: uma conversa de surdos, claro. Em contrapartida, quem escreve sentindo-se observado nunca se irá despir.

O que o comove?

Um homem ou uma mulher que se aperaltam horas a fio ao espelho, mas não têm para onde ir. Acenam a algumas pessoas, entram em alguns autocarros, perguntam de forma confusa por direções. Mas no fundo não têm para onde ir. Um poema pode ser isto. Devia ser isto.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

Talvez enviasse, não um poema, mas um livro: Sob Sobre Voz (1971), do João Miguel Fernandes Jorge. Isto para que, largando a noção de utilidade, o primeiro-ministro largasse também a política.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Sabem-me bem aquelas palavras do Leonard Cohen: “If I have been unkind / I hope that you can just let it go by / If I, if I have been untrue/ I hope you know it was never to you”. Mas estas já as soletro diariamente.