A polícia não serve para salvar vidas?
É interessante verificar que foi dos que mais violentamente costumam reagir a qualquer critica às forças policiais que vieram as reações mais indignadas com o comportamento da GNR em Monchique. Uma parte desta reação tem motivações políticas. A morte de uma única pessoa nos incêndios teria, depois de Pedrógão e de outubro, enormes efeitos políticos. Há quem ache que terá sido o receio por esses efeitos a principal motivação para o Governo ter dado toda a prioridade à preservação de vidas humanas, mesmo que isso correspondesse a perderem-se casas e terras. Ainda que isso fosse verdade, ela não deixa de estar certa por isso. E parece haver entre alguns dos críticos uma indisfarçável amargura por essa opção lhes ter retirado um fortíssimo instrumento de oposição ao Governo. Uma amargura que é, convenhamos, um pouco sinistra.
Mas há outra razão para quem não hesita em defender a polícia sempre que há um espancamento numa esquadra ou na rua, uma carga sobre uma manifestação ou um tiro sobre uma viatura que não pára numa “operação stop” a rasgar agora as vestes pelos direitos dos cidadãos. A divisão que fazem do mundo é entre bandidos, moradores de bairros sociais, arruaceiros e todos os suspeitos do costume, por um lado, e cidadãos comuns, “como todos nós”, por outro. E é com base nesta dicotomia entre normalidade e margens que avaliam a atuação policial. Só por isso se chocaram, aliás, com o espancamento de um adepto do Benfica, em Guimarães, em 2015. E os donos das propriedades de Monchique eram “pessoas como nós”, que apenas queriam salvar o que tinham.
Estranho é haver quem defenda que a polícia pode pôr em perigo a vida de alguém para defender um bem material mas não deve usar a força para salvar quem, num momento de desespero, se está a entregar à morte para defender a sua casa ou a sua terra. É uma inversão total de valores
Nas avaliação da ação policial, estas pessoas não aplicam os critérios relevantes para um Estado de Direito ou de necessidade no uso da força, mas critérios que dividem as vítimas da violência policial entre bons e maus, culpados ou inocentes. Pois eu acho que o uso da força pela polícia se mede pela sua necessidade e proporcionalidade. Porque o uso da força não serve para punir – isso só os tribunais podem fazer –, serve para proteger um bem maior do que aquele que, com a sua utilização, é posto em causa.
O uso da força dentro de uma esquadra perante alguém que, mesmo que seja um criminoso, não representa um perigo iminente para si e para os outros é inaceitável e tem de ser tratado como um crime. O uso da força para retirar alguém de uma situação de perigo de vida é não só aceitável como um dever de qualquer força policial. Estranho é haver quem defenda que a polícia pode pôr em perigo a vida de alguém para defender um bem material mas não deve usar a força para salvar quem, num momento de desespero, se está a entregar à morte para defender a sua casa ou a sua terra. É uma inversão total de valores.