Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Trump conquistará a respeitabilidade pela bomba
Como reação ao ataque com armas químicas na cidade de Khan Shaykhun, na província de Idlib, no noroeste da Síria, os EUA decidiram bombardear a base aérea de al-Shayrat, perto da cidade de Homs, de onde teria partido pelo menos a ajuda ao ataque. Este bombardeamento, que põe Washington e Moscovo em colisão frontal, surge quando se aperta o cerco à administração Trump por causa das ligações russas.
Começo por dizer coisas básicas que, há não muito tempo – e já existia terrorismo, regimes facínoras e armas químicas usadas contra civis –, chegavam para condenar uma ação militar: ela foi unilateral e à margem do direito internacional. Trump esteve-se nas tintas para as Nações Unidas e, já agora, para os principais aliados dos EUA. Tenho memória disto gerar grande revolta, noutros tempos. A segunda questão é talvez um pormenor: apesar de todas as fundadas suspeitas de que o horrendo ataque químico contra civis tenha partido do regime de Bashar al-Assad e contado com cumplicidade da Rússia, não houve qualquer investigação independente, como é exigido pelos representantes da Organização Mundial de Saúde no terreno, e nenhum dado seguro permite agir de forma punitiva. Eu sei que é já quase absurdo dizer isto, mas se os EUA não são o polícia do mundo, ainda menos se podem comportar como procurador, juiz e executante, tudo ao mesmo tempo. Até Bush fingiu que precisava de uns aliados.
Por fim, o evidente: a única verdadeira razão para este ataque é interna. É velho de sempre: quando as coisas correm mal em casa faz-se um bombardeamento fora. E se o que corre mal em casa tem a ver com a suspeita de infidelidades, nada como atacar os interesses da amante suspeita. A única coisa que não nos podem vender é a ideia de que se trata de uma qualquer punição humanitária. Estamos a falar do regime de Assad, campeão há décadas de todas as atrocidades. Esta foi, por mais doloroso que seja acreditar, apenas mais uma. Estamos a falar da Síria, onde o concurso de horrores não tem, dos vários lados da barricada, vencedor seguro. Estamos a falar da Rússia, que apesar do choque público manifestado com o ataque químico foi campeã de atrocidades na Chechénia. E estamos a falar dos EUA, que estão longe de ser virgens nestas matérias. Escusamos todos de fingir que Assad passou uma linha vermelha que não tenha sido passada vezes sem conta. Incluindo nesta guerra.
O porta-voz de Trump anunciou que os EUA destruíram 20% da capacidade militar do regime sírio. Acho que apenas destruíram 20% das suspeitas de ligação aos russos e dos problemas internos. E, de um dia para o outro, Trump recebeu uma chuva de elogios vindos de opositores. Como outros, Trump conquistará respeitabilidade pela bomba
Fanfarrão, como é hábito, o porta-voz de Trump, Sean Spyce, anunciou que os EUA destruíram 20% da capacidade militar do regime sírio. Permitam-me duvidar, até porque a base já está de novo a ser usada. Acho que destruíram 20% das suspeitas de ligação aos russos e dos problemas internos. E, de um dia para o outro, Trump recebeu uma chuva de elogios vindos de opositores. Neste momento, pelo menos por uns dias, ninguém olha para os caos na Casa Branca. Adivinho que perante o bom resultado desta estratégia ela continuará. Trump conquistará respeitabilidade pela bomba. Mas não se confunda isto com uma estratégia para a Síria.
Nikki Haley, a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, disse o derrube do regime sírio era, para além da derrota do Daesh, uma das prioridades da administração Trump. Como no Iraque? Como na Líbia? Depois logo se vê? Só não há qualquer risco de se repetirem as consequências porque a Síria já vive no caos absoluto. Mas é bom lembrar que Saddam e Khadafi eram torcionários do calibre de Assad, também todos os queriam fora do poder e também todos descobriram que essa vontade não substitui a existência de um plano, que é tudo o que Trump não tem. A ausência de plano levou ao assassinato dos dois ditadores, deixando claro para a Assad que a luta pelo seu poder é a luta pela sua vida. Mas a parte que fico mais curioso é a de saber como pretendem os EUA fazer cair o regime de Assad e garantir que Daesh e al-Nusra não voltam a ganhar terreno.
O que resolve este bombardeamento? Nada. E por isso mesmo todos aplaudem mas ninguém quer ir para o vespeiro. Sabendo-se que Trump não tem qualquer verdadeira estratégia para a Síria, é tão irresponsável a sua administração como aqueles que, para agradar às opiniões públicas impressionadas com as imagens de Khan Shaykhun, o aplaudem. Só aplaudiram duas coisas: uma manobra de diversão para desviar atenções de problemas internos e uma demonstração de força unilateral à margem das Nações Unidas e dos aliados. Nem uma nem outra coisa ajudam em nada o povo sírio.