Henrique Raposo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

A plasticidade moral da esquerda

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Nas últimas décadas, a esquerda portuguesa, dos jornais aos partidos, usou a tática que hoje é descrita como “trumpista” (dá uma certa vontade de rir): aqueles que não concordavam com o guião eram (e continuam a ser) apelidados de “fascistas” ou de “neoliberais”, fascistas com fato e gravata, ou de “salazaristas”, uma peça que vai sempre bem com qualquer coisa, ou de “trauliteiros”, outro trapinho que fica bem em qualquer lado. Gritaram tantas vezes estas palavras que agora ninguém acredita. Agora, com a chegada dos verdadeiros lobos, ninguém ouve. “Bolsonaro é fascista” não tem a ressonância que devia ter, porque a palavra perdeu significado e precisão.

Se acha que há diferenças, vá ao oculista Fotos LEO RAMIREZ / AFP / Getty Images e MAURO PIMENTEL / AFP / Getty Images

Se acha que há diferenças, vá ao oculista Fotos LEO RAMIREZ / AFP / Getty Images e MAURO PIMENTEL / AFP / Getty Images

A desonestidade continua na forma como a esquerda portuguesa toma posição tribais. Se Lula é de esquerda, então é um preso político, não um político preso por corrupção. Quando criticam Bolsonaro, dizem que é uma ameaça ao Estado de Direito (e é, de facto). Mas, quando defendem Lula, o Estado de Direito passa a ser uma maquinação dos poderosos contra o homem do povo. Quem apoia Lula não tem moral para criticar Bolsonaro. E quem apoiou Chávez também não.

A plasticidade moral (desculpem o eufemismo) da esquerda portuguesa é notável: um futuro potencial (o “fascismo” no Brasil) é mais importante do que o inferno socialista da Venezuela cheio de portugueses e luso-descendentes

Mas o truque é mesmo este. A América Latina é um campo de treino onde ocorre com intensidade agravada um dos truques da esquerda portuguesa e da sua câmara de eco, o jornalismo: os pecados reais da esquerda (Chávez) são notas de rodapé, os pecados potenciais da direita (Bolsonaro) são o centro do texto. No fundo, Bolsonaro dá jeito: enquanto atacam o “fascista” potencial do Brasil, os intelectuais de Lisboa evitam o tema central – o apoio que deram a um ditador, Chávez, que lançou um país inteiro na fome e na opressão. A plasticidade moral (desculpem o eufemismo) da esquerda portuguesa é notável: um futuro potencial (o “fascismo” no Brasil) é mais importante do que o inferno socialista da Venezuela cheio de portugueses e luso-descendentes.