Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

A “uberização” nem sempre é legítima

Há que questionar moralmente a algoritmização da sociedade

Há que questionar moralmente a algoritmização da sociedade

Uso Uber, a sua proibição é uma ideia ludista que tenta travar o vento com as mãos, os taxistas estão presos num tempo só deles, o estado só tem de liberalizar o mercado deixando de imprimir um número limitado de licenças que são oficialmente vendidas por 500 euros mas que acabam no OLX a 100 mil euros. O socialismo gera sempre o pior capitalismo de casino. Tudo isto está certo, mas convém olhar para o outro lado do espelho. Convém não gozar ou desumanizar os taxistas, convém perceber aquele povo (perceber não é desculpar). É que os instintos de diabolização ou acinte fácil que têm sido lançados sobre os taxistas mostram bem o ar do tempo: as elites metropolitanas desprezam os anseios de parcelas da população pouco telegénicas e depois ficam surpreendidas quando essas desprezadas parcelas votam nos Trumps, nos “não” à paz ou nos “não” à UE.

Do outro lado do espelho, encontramos dois pontos. Em primeiro lugar, as “ubers” nem sempre têm razão. Se a Uber contrata os seus próprios carros, a Google usurpa os “táxis” de músicos, jornalistas, escritores, realizadores e bloggers. A Google ganha dinheiro com o trabalho dos outros. Devemos ter em mente que um avanço tecnológico não é um bem em si mesmo; o que define a legitimidade de um novo instrumento não é a sua sofisticação técnica, é a sua moralidade. A moral da Google deixa muito a desejar. O seu algoritmo é quase totalitário. E há mais casos. Por exemplo, os enxames de drones que ameaçam a nossa vida não são aceitáveis. Usar um drone não pode ser banal. Usar um drone não é o mesmo que pilotar um inofensivo carrinho telecomandado. Usar um drone até pode ser mais perigoso ou intrusivo do que usar um carro.

Em segundo lugar, os taxistas encaixam na perfeição na estrutura demográfica do novo populismo. Ali estão os homens brancos de 40, 50 e 60 anos que são apanhados na curva da vida, que se sentem cada vez mais exteriores a um mundo que não compreendem, que perdem a narrativa que lhes dava sentido. Aqueles bigodes, barrigas e bitaites revelam pessoas que não sabem lidar com telemóveis inteligentes; muitos nem sequer têm computador, são homens do antigamente, do analógico, que nunca ouviram falar em algoritmos. Vão eles fazer o quê se deixarem de ser taxistas? Mas não têm eles o dever de se adaptar? Claro. Mas nem todos terão essa capacidade, boa parte cederá ao ressentimento que acabará no voto nacionalista, representado em Portugal pelo PCP. Na França, votam Le Pen. Nos EUA, votam Trump. E, com ou sem vitória do Trump, daqui a dez anos voltaremos a esta conversa, porque o ponto não será Uber vs. táxis, mas sim condutores humanos vs. carros sem condutor. Recorde-se que o agregado taxista-camionista é a profissão que mais homens emprega nos EUA. E depois seguir-se-ão as secretárias, os assistentes legais ou mesmo os advogados e até médicos, porque já há algoritmos que conseguem ler toda a literatura médica do planeta. Voltamos assim ao primeiro ponto: o que é possível no campo tecnológico não é necessariamente legítimo no campo político ou moral. A algoritmização da sociedade tem de conhecer um limite, até porque está a criar um exército de ressentidos que votará sempre no grotesco como forma de vingança.