CIMEIRA COM TRUMP

Direitos humanos: o suspiro de alívio de Kim Jong-un

Os líderes da dinastia Kim acreditam que o seu poder é de origem divina Foto Ed Jones/AFP/Getty Images

Os líderes da dinastia Kim acreditam que o seu poder é de origem divina Foto Ed Jones/AFP/Getty Images

As notícias sobre a fúria do regime norte-coreano sobre os seus próprios cidadãos são chocantes mas amplamente difundidas. Em Singapura, o alegado líder do mundo livre capitulou perante o líder do mundo encarcerado e o tema dos direitos humanos tornou-se a mais gritante ausência do acordo assinado entre Kim e Trump

Texto Ana França

“Kim deve ter suspirado de alívio no avião de regresso a casa. Afinal, o Presidente dos Estados Unidos não está a pensar pressioná-lo de todo para deixar de martirizar o seu povo.” É assim que Phil Robertson, vice-diretor da Human Rights Watch (HRW) para a Ásia, responde quando pedimos um comentário à completa ausência de referências à questão dos direitos humanos no documento que saiu da conferência entre Kim Jong-un e Donald Trump. Phil Robertson Ainda está em Singapura e diz que muitos dos seus colegas estão “profundamente desolados” com a “enormidade do tema que ficou ausente”.

Contra uma tela de azul, vermelho e branco, as cores das bandeiras dos Estados Unidos e também aquelas que compõem a bandeira norte-coreana, Donald Trump apertou a mão a Kim Jong-un e, nesse gesto, legitimou um regime para o qual não há defesa possível. “Por muito discutível que seja o próprio epíteto de ditador, os Estados Unidos tinham de ter pressionado por uma menção no documento final ao problema gritante dos abusos de direitos humanos na Coreia do Norte mas nem uma linha, nada. Não estava à espera de milagres mas estava à espera de decência”, diz ainda Robertson.

Na Coreia do Norte, duas em cada cinco pessoas não comem o suficiente para viverem saudáveis, diz a ONU Foto Ed Jones/AFP/Getty Images

Na Coreia do Norte, duas em cada cinco pessoas não comem o suficiente para viverem saudáveis, diz a ONU Foto Ed Jones/AFP/Getty Images

“Basicamente, as pessoas trabalham até à morte: 18 horas de trabalho por dia, fome, sem acesso a cuidados médicos – por exemplo, numa mulher grávida, o bebé escorrega-lhe literalmente pelas pernas sem ninguém dar por nada -, tortura, abusos sexuais a mulheres e homens…” Este é um dos relatos que Jieun Baek, investigadora da Universidade de Harvard, partilhou com o Expresso na altura em que lançou um livro em que colou mais de cem testemunhos de desertores norte-coreanos. “Não há saída. Os desertores diziam-me que a tortura física era mesmo horrível, mas pior era psicologicamente. Quando a mente quebra, a pessoa percebe ‘vou morrer em breve’. Um jovem contou-me que foi parar aos campos com 15 anos. Sentia o cheiro dos corpos queimados, achava nojento. Três anos depois, tinha tanta fome e estava tão habituado ao ambiente que era como um delicioso barbecue. A cabeça muda completamente para conseguirem sobreviver”, acrescentou.

A Rádio Internacional da BBC abriu segunda-feira a sua edição da manhã com testemunhos soltos de vários norte-coreanos. Sem introdução do jornalista, sem aviso prévio aos pais que pudessem estar a ouvir aquilo com os seus filhos por perto. Depois dos três “bips” a anunciar a hora certa, uma voz numa língua estranha começava, seguida pouco depois da tradução simultânea em inglês: “No Exército e nos Serviços Secretos somos incentivados a encontrar gente contra o regime e a trazê-los para os campos de trabalhos forçados. Se conseguires trazer muitos, os chefes vão-te dando regalias como a promessa de poderes frequentar um curso universitário, licenças para ires ver a tua família ou comida para lhes levares”. Uma pausa. Uma voz de mulher: “É triste, é deprimente quando não temos acesso a produtos de higiene básica e os que há ninguém tem dinheiro para os comprar a menos que a tua família seja bem relacionada”. Assim seguiu a emissão por mais de dez minutos. “Bom dia, passam quinze minutos das dez da manhã em Londres.” Tudo bem neste meridiano, menos bem a norte do Paralelo 38.

O jornal “The Strait Times” teve garrafas de água personalizadas para a conferência Foto Sion Ang/SOPA Images/Getty

O jornal “The Strait Times” teve garrafas de água personalizadas para a conferência Foto Sion Ang/SOPA Images/Getty

Não é só uma história, não são só cem. O mais completo relatório da ONU sobre a situação na Coreia do Norte não é uma leitura fácil. As violações ao direito à alimentação aparecem logo em primeiro lugar, seguidos de “tortura e tratamento desumano banalizados”, “prisões e detenções arbitrárias”, “negação das liberdades individuais mais fundamentais”, “violação do direito à vida e do acesso a cuidados médicos” e “sequestro de pessoas por parte do Estado”.

A Human Rights Watch recolhe vários testemunhos de desertores da Coreia do Norte, muitos deles trabalham fora do país, na China e na Coreia do Sul e não pensam voltar. As histórias que contam são todas parecidas mas há uma, que se repete de forma quase idêntica, e que Robertson destaca com particular preocupação. “As pessoas que falam connosco estão sempre com o coração na mão por causa das suas famílias, que sofrem pressões e intimidações diárias, multas pesadíssimas e muitas vezes são presos e desaparecem. Isto porque o regime quer que eles liguem aos seus filhos desertores a dizer para voltarem e eles não o querem fazer.”

A lista que a ONU publicou é repetida por Robertson, que diz que os norte-coreanos estão “possivelmente pior agora do que antes da conferência”. “Donald Trump teve coragem de dizer que os grandes vencedores desta conferência foram os milhares de pessoas presas nos gulags norte-coreanos neste momento. Como é que é possível? De que forma é que ele os está a ajudar permitindo que no texto do acordo essa questão passe completamente em branco?”, pergunta-se Robertson.

Para o responsável pela divisão asiática da HRW, o problema é que Donald Trump não entende a ligação entre o programa nuclear norte-coreano e as vergastadas nos direitos humanos. “Este programa só existe devido aos trabalhos forçados que o regime impõe a milhares de pessoas. Só um regime ditatorial daria tantos recursos a um programa nuclear enquanto as pessoas passam fome.” Com este acordo, apesar das promessas de reaproximação e normalização, na sua opinião os norte-coreanos ficaram numa situação ainda mais delicada. “Kim foi trazido para a arena política mundial, foram prometidas concessões nas áreas da segurança, falou-se de estabelecer diálogo mas nem um grama de pressão sobre direitos humanos. Kim vai continuar a fazer o que faz e talvez pior porque agora sabe que os acordos - e talvez até o suavizar das sanções - não dependem de mudanças nesta área”, completa o Robertson.

Não dependem mas, por lei, deviam depender. Em 2016, o Congresso norte-americano passou uma lei - o Ato para a Implementação de Sanções - em que ficam bem claras as obrigações do Presidente dos Estados Unidos e dos seus representantes no que diz respeito ao sancionamento de abusos cometidos contra os direitos humanos por parte de regimes como o norte-coreano.

Foto Getty

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A narrativa da Administração norte-americana tem-se focado na necessidade de pressionar a Coreia no Norte a aceitar o fim do seu programa nuclear mas o que a lei norte-americana diz é que esta esforço não é dissociável daquele que deve ser feito para punir o rotineiro ataque às mais básicas liberdades pessoais cometidas pela Coreia do Norte. A lei impõe, por exemplo, o congelamento de bens e o exílio financeiro de todos os membros dos governos responsáveis por ataques aos direitos humanos. Ora, o Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte aparece no topo dessas entidades prevaricadoras e Donald Trump acabou de se encontrar com o seu secretário-geral. Em resumo, a legislação em vigor manda que o Presidente discuta direitos humanos a par com assuntos de proliferação e não deverá ser possível fazer passar pelo Congresso um aliviamento de sanções sem reformas tangíveis na área dos direitos humanos.

Robertson está pouco esperançoso. “Donald Trump terá de ter uma conversa com o Congresso se quiser levantar algumas das sanções à Coreia do Norte porque elas estão ligadas a reformas sociais que não estão a acontecer. Mas pelo que vi na conferência, Trump irá utilizar as chamadas ‘exceções’ para autorizar, por exemplo, a viagem de Kim aos Estados Unidos, apesar de ele estar na lista negra, impedido de entrar no país. Trump troca sem problema a luta pelos direitos humanos por qualquer capital político que esta encenação de paz lhe possa dar em casa.”

Melhor falar que não falar

“Continuo a achar que é bom eles terem-se encontrado. Donald Trump diz muitas coisas estranhas mas quando ele diz que é preciso interagir com os adversários, falar com as pessoas, não é assim tão despropositado. É positivo que haja este diálogo, é positivo que eles se tenham encontrado porque este é um alicerce para resoluções futuras”, diz ao Expresso Christopher Green, investigador principal do Crisis Group para as Coreias.

Apesar do otimismo, o analista diz que “não há muita substância nos pontos acordados” e que “nada aqui é concreto: nem o que vai acontecer nem como ou quando vai acontecer”. E pode falhar pelas mesmas razões que os acordos das últimas duas décadas falharam. “A materialização dos acordos em ações de ambos os lados, a vontade dos norte-coreanos em manterem as suas promessas mas também a vontade do Congresso em permitir ao Presidente que ele faça a sua parte, são pontos essenciais”, diz. O diálogo, prevê Green, pode durar três anos. “Há um alicerce agora, um andaime e isso é positivo. As pessoas estão sempre a dizer que esta conferência é para deitar ao lixo, que isto foi uma perda de tempo mas é demasiado cedo para dizer isso.”

Norte-coreanos festejam lançamento de míssil em 2017 Foto Kim Won-jin/AFP/Getty Images

Norte-coreanos festejam lançamento de míssil em 2017 Foto Kim Won-jin/AFP/Getty Images

Os exageros de Trump, contudo, estão lá. “É um pouco desolador a forma como Donald Trump falou de forma tão positiva sobre Kim. Não se pode ter uma cimeira entre líderes se eles não se sentirem iguais mas não era necessário aquela linguagem tão próxima e amigável. Não era preciso dizer que hoje é um grande dia e Kim é um homem bom e inteligente mas neste momento não sei se era ideal falar de direitos humanos porque esta conversa só se organizou porque o que estava em cima da mesa era a desnuclearização”, diz Green, acrescentando ainda: “É claro que ninguém gosta desta subordinação dos direitos humanos à questão do armamento mas os Estados Unidos vão sempre estar mais preocupados com as questões de segurança. Não podemos estar surpreendidos por isso não ter sido discutido”.

Segundo informações que recolheu para a sua própria investigação sobre o processo de aproximação da Coreia do Norte aos Estados Unidos junto de alguns desertores próximos do regime, Green diz ao Expresso que impor esta discussão podia ter arruinado progressos futuros. “A questão aqui é a seguinte: quão desesperados estavam os líderes norte-coreanos antes de se sentarem à mesa com os Estados Unidos? Eu não sei a resposta mas não me parece que estivessem muito desesperados. Um desertor disse-nos que este plano de aproximação existe pelo menos desde 2016, por isso não é possível saber se foram as sanções de 2017 que os quebraram. É impossível saber, mas se eles estivessem muito desesperados podíamos ter tocado nos direitos humanos; se não estivessem, então podia ter-se-ia perdido tudo.”