Daniel Oliveira

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Da fria moralidade burocrática

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Se há assuntos que me são estranhos são aqueles que determinam a relação da Igreja Católica com os seus “pecadores”. Mas sei que o Papa Francisco tem tentado o que parecia impossível: que o seu rebanho se dedique mais às misérias do mundo do que a uma obsessão quase patológica com tudo o que envolva o sexo e que dediquem mais tempo a pregar o amor do que o ódio, o perdão do que a intolerância. Um caminho especialmente difícil em Portugal. Quer na exortação apostólica Amoris Laetitia (sobretudo no seu capítulo VIII, “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”), e em muitas das suas declarações públicas, o Papa tem tentado que os católicos façam uma discussão sincera sobre a sua relação com novas formas de vida que ameaçam torna-se maioritárias mesmo entre eles. Um esforço de compreensão, integração e diálogo. Uma caminhada que se adivinha muito longa e espinhosa.

Por ecos que me vão chegando de amigos católicos mais ativos, o efeito que este Papa tem tido no mundo não se sente tão fortemente junto do clero nacional. Com honrosas exceções, os seus questionamentos e a sua abertura para debates mais complicados não têm levado a hierarquia religiosa portuguesa a incomodar os fiéis com perguntas difíceis.

No entanto, num documento recente, assinado por D. Manuel Clemente, a questão do sacramento de divorciados (ou pessoas em “situação irregular”) foi tratada. A resposta de Manuel Clemente ao Papa, que tinha apelado para o abandono da “fria moralidade burocrática”, recordando que o confessionário não é uma “câmara de tortura”, mas um “lugar de misericórdia”, não podia ser mais desastrada. Antes de mais, defendeu que a comunhão e a confissão de divorciados se realizem, quando fossem autorizadas, “de modo reservado”. A hipocrisia em todo o seu esplendor.

Depois, apelou ao absurdo: que os católicos recasados tenham uma “vida em continência”, sem relações sexuais. Ou seja, que não exprimam da forma mais sublime o amor entre si. É verdade que o conselho não é da autoria de D. Manuel Clemente. Ele baseia-se numa nota com critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia, assinada pelos bispos da Região pastoral de Buenos Aires, que foi recebida com agrado pelo Papa. Nessa nota, diz-se que essa possibilidade pode ser dada aos recasados, não ignorando a dificuldade dessa escolha e falando do que fazer quando ela se torna impossível, que até os bispos conseguirão prever que é sempre. Ou seja, D. Manuel Clemente socorre-se de um documento que não é do Papa e transforma o que nele era um “pode” num “deve” para assim poder fazer a leitura a mais restritiva possível dos apelos do Papa.

É quase impossível reprimir a vontade de fazer humor com a “continência” proposta por D. Manuel Clemente. Mas não irei por aí porque o assunto tem, para milhões de católicos divorciados ou recasados, bastante relevância. É comum dizer-se que a Igreja é isto mesmo e que quem espera outra coisa dela anda enganado. Se há verdade feita que foi desmentida nos últimos anos foi esta. Pelo Papa Francisco, que tem tentado, só dificilmente conseguimos adivinhar com quanta resistência, recentrar os católicos numa forma diferente de viver a fé.

As religiões e as Igrejas são fruto do tempo em que nasceram e da sua história. Não é suposto viverem ao sabor dos tempos e das modas. Não é suposto serem jangadas que vão com a corrente, mas portos que oferecem segurança aos seus fiéis. Mas há qualquer coisa que as vai prendendo à realidade. Não à realidade do mundo, que é muito diversa. Mas à realidade do lugar onde estão. A própria Igreja Católica mudou várias vezes. Por vezes de forma radical. A última vez que o fez foi no Concílio Vaticano II. A proposta que o Papa Francisco faz não chega sequer a essa radicalidade. Representa apenas um mínimo de ligação da Igreja aos seus próprios fiéis.

O apelo de D. Manuel Clemente poderá parecer ao próprio uma cedência aos apelos do Papa. É, na realidade, uma desajeitada demonstração de incompreensão desse apelo. A exibição da tal “fria moralidade burocrática” que o Papa Francisco gostava de ver abandonada. Centrar o debate sobre a integração dos casados na abstinência sexual só terá um resultado: um distanciamento ainda maior destes casais em relação à sua Igreja. O conselho, esse, não será seguido. Porque está errado a luz de qualquer crença. Porque é “antinatural". Porque é feio. Porque, como disse o padre Anselmo Borges, “ao impossível ninguém é obrigado”.

D. Manuel Clemente não se limitou a ter a leitura mais restritiva das possibilidades abertas pelo Papa Francisco. Uma abertura que por si só desmente a ideia de que a Igreja Católica não pode mudar nestas coisas. Ele transformou essa cedência no contrário do espírito que era pedido. Percebendo-se assim que nem na Igreja se fazem milagres. Ela é feita de homens, com as suas limitações e hábitos, vícios e estreitezas. Os recasados católicos, depois de ouvir tão vil conselho, lá continuarão a fazer o que todos os casais fazem, graças a Deus. Apenas mais convencidos que o que o seu padre lhes tem para dizer serve-lhes de pouco na vida. O que só é mau para a própria Igreja.