Saúde

Portugal é dos poucos que contestam alertas de cancro nos rótulos do vinho

Foto D.R.

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A Irlanda dá o primeiro passo. As garrafas de vinho e de outras bebidas alcoólicas vão ter alertas nos rótulos para o risco de cancro. Na Europa, Portugal é uma das poucas vozes a contestar isto. Se a moda pega, o sector do vinho morre, diz a produção. Os produtores irlandeses já perceberam que têm aqui um aliado e fazem um apelo direto ao seu parceiro comunitário: “Façam ouvir a vossa voz”

Texto Margarida Cardoso

E se de repente, ao pegar numa garrafa de vinho, ler um alerta a avisar que o álcool provoca o cancro? Ainda terá coragem de beber um copo? A pergunta pode parecer estranha, mas os irlandeses vão ter de lidar com ela diariamente, sempre que quiserem um copo de cerveja, uísque, vinho ou qualquer outra bebida alcoólica.

Tudo porque, na guerra contra o consumo excessivo de álcool, a Irlanda acaba de aprovar um pacote de medidas que promete fazer história no sector e na rotulagem à escala mundial, equiparando as bebidas alcoólicas ao tabaco, um produto já habituado às imagens e mensagens chocantes sobre os riscos dos cigarros para a saúde.

“Isto é terrorismo no consumo”, comenta Ana Isabel Alves, secretária-geral da Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal (ACIBEV) e uma das pessoas que acompanhou de perto durante os últimos dois anos o desenrolar dos acontecimentos que conduziram a este pacote restritivo aprovado na Irlanda.

Garante que a introdução deste alerta nos rótulos, mas também em toda a publicidade a bebidas alcoólicas, significa, na prática, “enganar os consumidores”. “É uma informação incompleta, errada e não fundamentada”, afirma.

É verdade que as exportações portuguesas de vinho para a Irlanda são residuais e o país nem aparece na lista dos principais mercados do sector, mas o risco maior para o negócio está na “possibilidade de contágio a outros mercados muito focados nas questões da saúde”, explica.

Em países como a Escócia ou a Coreia do Sul, a discussão sobre o tema já começou. Mas, no sector, um dos maiores receios é ver o norte da Europa replicar este tipo de medida, ou até os Estados Unidos, onde a American Cancer Society (sociedade americana de cancro) tem vindo a lançar avisos sobre o aumento do risco de cancro a partir de um consumo diário de 10 gramas de álcool.

Nos trabalhos publicados nesta área apontam-se em especial riscos em alguns tipos de cancro como o da mama, do fígado ou do esófago. Aliás, a Organização Mundial de Saúde já assumiu que o consumo de bebidas alcoólicas pode ser um fator carcinogénico.

Produtores nacionais surpreendidos

Entre os produtores nacionais, a aprovação pelo Senado irlandês, esta quarta-feira ao fim da tarde, do polémico Irish Alcohol Bill, “foi uma surpresa”, como confessou ao Expresso Olga Martins, presidente executiva da Lavradores da Feitoria, um grupo que junta 20 produtores para vender os seus vinhos em 23 mercados, um dos quais é a Irlanda, que vale apenas €10 mil num volume de negócios de €2 milhões.

“Talvez por andarmos ocupados com as vindimas, isto foi uma surpresa completa. E é um exagero extremo, até porque não faz qualquer sentido equiparar álcool a tabaco em termos de riscos para a saúde. Sempre defendemos que o álcool tem de ser consumido com moderação, mas isto é algo completamente diferente”, afirma ao Expresso.

No caso da Lavradores da Feitoria, já há vinhos com rótulos diferentes, para responder às exigências de alguns mercados, ou com uma etiqueta junto ao rótulo quando as vendas são em menor escala e não justificam investir num rótulo especial. Para a Irlanda, Olga admite que tudo terá de ser bem pensado, uma vez que estão em causa muito poucas garrafas. “Fazer um rótulo especial pode significar que temos de deixar de vender o nosso vinho de entrada de gama, que ronda os 10 euros, porque o importador provavelmente não quer passar este valor, considerado uma barreira psicológica, e o vinho fica mais caro por causa do rótulo”, acrescenta.

“Mais preocupante, no entanto, é pensar que isto pode acontecer no futuro noutros mercados com maior peso, como a Noruega ou os Estados Unidos. Se a moda pega, o sector pode estar em risco”, diz.

Para já, será preciso esperar para ver o que vai acontecer exatamente. O pacote restritivo foi aprovado no Parlamento, na semana passada, e agora no Senado, mas ainda não está definida a mensagem tipo a imprimir nos rótulos. A ideia base é “alcohol causes cancer”. Mas a associação sectorial Alcohol Beverage Federation of Ireland (ABFI) disse ao Expresso que ainda não foi regulamentado de que forma isto será feito. Haverá imagens de choque, como no tabaco? “Não sabemos”, respondem. No entanto, estão certos de que “o efeito no sector das bebidas alcoólicas no país poderá ser devastador”.

Desde logo, porque todas as bebidas alcoólicas made in Ireland “vão ter o estigma do rótulo” a alertar para o risco de cancro. “Nenhum outro país no mundo tem esta exigência - e isso na concorrência externa direta pode significar danos reputacionais para as nossas bebidas alcoólicas”, diz ao Expresso Patricia Callan, diretora da ABFI.

Patricia recorda que Portugal, também afetado pelas medidas na frente exportadora, apresentou um parecer circunstanciado no âmbito do TRIS (organismo da União Europeia que gere o Sistema de Informações sobre Regulamentações Técnicas) e, nesta fase do processo, apela diretamente aos produtores e à indústria portuguesa de bebidas: “façam ouvir a vossa voz a nível comunitário sobre o impacto negativo dos novos rótulos”. A única esperança nesta guerra é ver Bruxelas pôr um travão na rotulagem de choque.

Portugal contesta no TRIS

Em tudo isto, “a única notícia positiva é que a ideia inicial de que a mensagem teria de ocupar no mínimo 1/3 dos rótulos caiu”, explica Ana Isabel Alves, sublinhando que Portugal foi uma das poucas vozes na Europa a contestar a nova legislação irlandesa, através do TRIS - Technical Regulations Information System, ou Sistema de Informações sobre Regulamentações Técnicas, um procedimento comunitário para situações em que um Estado membro lance nova legislação que possa ser considerada um entrave ao comércio na União Europeia.

“Inicialmente (2016) 10 países apresentaram pareceres sobre este projeto de lei de saúde pública no âmbito do TRIS. Mas o governo irlandês incorporou algumas alterações e, na fase seguinte, só Portugal e Itália contestaram isto”, refere Ana Isabel Alves, explicando que “talvez por se tratar de uma questão de saúde pública, os outros países preferiram ficar fora da polémica”.

Com este pacote que acaba de ser aprovada na Irlanda, são introduzidas medidas várias de controlo do consumo de álcool, do preço mínimo unitário, que define valores mínimos por grama de álcool, às restrições publicitárias e à rotulagem, o ponto que mais penaliza países produtores como Portugal.

Numa altura em que os estudos científicos se multiplicam e apresentam por vezes conclusões aparentemente contraditórias, a ACIBEV considera que “o Governo irlandês não apresentou argumentos científicos ou baseados em evidências para justificar a introdução da exigência de um rótulo referente à relação direta entre o álcool e cancros fatais”. “A associação entre álcool e o risco de cancro é complexa e não pode ser explicada adequadamente num único rótulo de advertência”, até porque “a relação entre o álcool e o cancro depende de fatores individuais, de múltiplos fatores ligados ao estilo de vida e da quantidade consumida”, acrescenta a associação.

Na argumentação apresentada contra as novas regras de rotulagem de bebidas alcoólicas na Irlanda, Portugal sublinha que “a regulamentação tem de ser aplicada de forma consistente”. Na base desta tese está a certeza de que a aplicação dos requisitos de rotulagem não pode ser justificada tendo por base apenas o álcool, deixando fora outros produtos categorizados como apresentando risco de cancro. “Muitos bens comuns de consumo e estilo de vida estão associados a um aumento do risco de cancro”, destaca a posição portuguesa apresentada no âmbito do TRIS, avançando exemplos concretos, como a ligação do consumo de carne processada a cancros do colo retal e do estômago, ou o consumo de bebidas muito quentes ao esófago ou o do contracetivo oral ao cancro da mama, ou o da inatividade física ao fígado, mama e endométrio.

Como comunicar os riscos

“Os riscos devem ser transmitidos de uma maneira que permita aos consumidores percebê-los no contexto”, mas “ a comunicação dos riscos deve contrabalançar os benefícios e os riscos de consumo de álcool”, diz a argumentação lusa em Bruxelas. E justifica: “o álcool está associado, também, a benefícios para a saúde”, incluindo um efeito protetor contra doenças cardiovasculares e diabetes.

Em resumo: o risco de cancro ligado ao álcool, vinho incluído, está cada vez mais na ordem do dia, mas os estudos sobre o assunto são complexos e ainda há conclusões contraditórias. Além do mais, diz a ACIBEV, ao contrário do que acontece no tabaco, nocivo para a saúde mesmo quando o consumo é baixo, há estudos que defendem benefícios para a saúde em caso de consumo moderado de álcool.

Portugal tem o consumo per capita de vinho mais alto do mundo (51,4 litros /pessoa por ano), mas é dos países europeus com consumo mais baixo de álcool porque está muito abaixo da média noutros segmentos, como as bebidas espirituosas.

Num país em que o vinho faz parte da cultura e das tradições da mesa, seguir o exemplo da Irlanda está fora de questão no quadro atual, dizem os responsáveis do sector. E apresentam mais um argumento pró-vinho: o vinho tinto é rico em compostos fenólicos, como o resveratrol, que apresenta grande quantidade de antioxidantes.

Do lado médico, Vítor Veloso, presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro, acredita que “os alertas para evitar o consumo excessivo de álcool como forma de prevenção da doença oncológica faz sentido”. Quanto à mensagem a ligar diretamente álcool e cancro nos rótulos das garrafas, comenta apenas: “no que respeita a questões de saúde é uma coisa que não fará mal a ninguém”.