Daniel Oliveira

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Ventura, filho de Passos

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Se eu escrever que André Ventura é um perigo toda a gente sorrirá. Afinal de contas, o homem é um fenómeno do Correio da Manhã TV. Um comentador da bola. Um político de 12ª linha. Um tipo sem tropas, sem poder, sem influência. Um homem que apenas procura protagonismo, que ninguém leva a sério.

Proponho que vão procurar o que se escrevia sobre Jair Bolsonaro há três ou quatro anos. Era tudo isso e um pouco menos, porque nem sequer tinha passado por um partido de poder. Era um maluco, com um historial nada abonatório até como militar. Uma irrelevância parlamentar que só preocupava na medida em que contribuía, com muitos outros, para o abandalhamento parlamentar. Teve apenas a sorte de estar lá quando tudo lhe facilitou a vida. É o que André Ventura está a fazer: a posicionar-se para ficar à espera. Com uma pequena diferença: ele pode apresentar-se como um dissidente do PSD e tem muitíssimo mais tempo de antena, através do palco com as maiores plateias – o comentário desportivo – e mais notoriedade do que Bolsonaro tinha no gigantesco Brasil.

Em Portugal isto é impossível, dirão. Sim, Portugal não é como Brasil, assim como o Brasil não é como os EUA e os EUA não são como Itália e a Itália não é como a Hungria e a Hungria não é como as Filipinas. Mas o ar do tempo é o mesmo, as redes sociais têm o mesmo peso no debate público e o descrédito da política não é menor do que no resto da Europa. Bastaria acontecerem duas coisas para tudo descambar: o início de uma nova crise económica, com origem na Europa, e José Sócrates ser absolvido por falta de provas ou a acusação estar mal preparada.

André Ventura foi parido por Passos, num processo de crescente radicalização do PSD que só foi interrompido pela mudança de ciclo político. Agora, tem um carimbo de validade. Só tem de esperar para ver se é bafejado pela sorte

O caldo está pronto e a única coisa que falta, em Portugal, é um protagonista. Como se vê pelo Brasil e pelos EUA, não é preciso ninguém especialmente brilhante. Na realidade, André Ventura é intelectualmente mais preparado do que Jair Bolsonaro e Donald Trump. Professor universitário, o que casa melhor com o fascínio dos portugueses pela autoridade académica (os brasileiros preferem militares e os norte-americanos empresários), André Ventura tem, sobre qualquer outro, a vantagem de ter sido caucionado por um primeiro-ministro e um dos principais partidos portugueses.

Não estou a dizer que André Ventura será o Bolsonaro português. Tal como aconteceu com o próprio Bolsonaro ou com Trump, ele depende de uma tempestade perfeita. De uma imprevisível confluência de fatores. O que estou a dizer é que a parte mais difícil já aconteceu. Um dos problemas do discurso de extrema-direita em Portugal é a nossa memória. Qualquer saudosismo está, pelo menos como discurso inicial, condenado a ficar amarrado a uma pequena franja da população. Ainda mais quando a história da extrema-direita portuguesa sempre esteve ligada à criminalidade comum. Para que um discurso de extrema-direita se afirmasse precisaria de vir de um espaço mais amplo e democraticamente legitimado. Só não vindo de um lugar suspeito pode, depois de fazer um discurso racista, homofóbico e contra direitos cívicos fundamentais, fazer-se de vítima da ditadura do politicamente correto.

Pedro Passos Coelho deu esse salvo-conduto a André Ventura. Não o deu por engano. Foi expressamente em sua defesa depois dele ter dito coisas que levaram o CDS a desvincular-se da sua candidatura à Câmara Municipal de Loures. Não foi um deslize, foi uma opção política. Uma opção facilmente compreensível se começarmos a ler com mais atenção os textos de opinião e as campanhas do “Observador”, e se começarmos a seguir a carreira política de pessoas como Miguel Morgado, um radical com pouco em comum com a história do PSD mas que foi o ideólogo de Passos. Ventura foi parido por Passos, num processo de crescente radicalização do PSD que só foi interrompido pela mudança de ciclo político. Agora, tem um carimbo de validade. Só tem de esperar para ver se é bafejado pela sorte.