Bourdain, a vida que eu invejei
Anthony Bourdain viajava, comia e conversava. Três das quatro coisas realmente importantes na vida. Não era propriamente um chefe de cozinha. Talvez ele achasse que era menos do que isso mas eu acho que era muito mais. Os seus programas não eram sobre culinária, eram sobre comer. O que quer dizer que eram sobre a vida. Sobre cultura, religião, política. Quando me viciei em Bourdain, lá para 2012, escrevi aqui sobre isso, partilhando com os leitores uma descoberta que muitos deles já teriam feito. “No Reservations” passava na SIC Radical e eu não perdia um. Na altura escrevi sobre dois episódios: no Haiti e na Nicarágua. Especialmente interessantes porque a qualidade da comida era especialmente irrelevante. Especialmente interessante porque ele conseguia que a política tivesse ali, à volta do ato primordial de comer, uma densidade que falta em tantos trabalhos feitos por jornalistas.
No episódio sobre o Haiti há um momento forte, que na altura assinalei: “Numa rua de Port-au-Prince, servido por uma vendedora que cozinha ali mesmo, no meio das ruínas, onde as pessoas vivem, vai-se juntando uma multidão. Repara que não olham para as câmaras ou para ele e para o seu anfitrião haitiano. Olham para a comida. Tendo dinheiro da produção para gastar, decide o que qualquer pessoa com coração decidiria. Compra toda a comida à vendedora e manda servir. Ficam todos a ganhar. Rapidamente repara no seu erro. Uma multidão esfaimada invade o restaurante improvisado na rua. A situação fica descontrolada e Bourdain arrepende-se do seu gesto inconsequente. Tira do episódio algumas conclusões difíceis para a solidariedade prêt-à-porter tão ao gosto ocidental. Para ajudar as pessoas é preciso tempo, persistência e sacrifício.”
É estranho que as pessoas que mais sinais nos dão de compreender a vida sejam as que têm mais dificuldade em vivê-la. Aquele era um gajo com quem eu gostaria de partilhar uma refeição e uma bebedeira. Nós invejávamos a vida de Anthony Bourdain. Talvez ele invejasse a nossa
Bem distante do fascínio com os chefes, que o star system transformou em estrelas globais, a minha admiração por Bourdain nasceu da sua capacidade de nos mostrar quem somos a partir do que comemos. E é isso que o afastava quase sempre dos grandes restaurantes da moda e o levava a casa de famílias italianas, cervejarias com bifanas no pão. Os lugares onde a vida corre. A mesa é o melhor lugar para começar uma boa conversa e Anthony Bourdain nasceu para conversar. Nada de especial, nada de terrivelmente importante. Conversa que se perde ao longo de uma refeição e de uma noite de copos. É estranho que as pessoas que mais sinais nos dão de compreender a vida sejam as que têm mais dificuldade em vivê-la. Ou talvez não. Esse era o fascínio que eu tinha por Bourdain: aquele era um gajo com quem eu gostaria de partilhar uma refeição e uma bebedeira.
Claro que Anthony Bourdain vivia de visita. Isso era mais evidente quando os programas eram sobre os nossos lugares de quotidiano. O cliché estava lá, até na boca dos seus interlocutores. Não fazendo programas de turismo Bourdain não deixava de ser um turista. E depois matou-se. Talvez porque a vida dele não fosse exatamente a que eu queria ter. Talvez passar dois terços do ano sem casa, ter amigos por uma semana e viver só para descobrir sem nunca chegar a saborear não seja a vida que se deseja a alguém. Nós invejávamos a vida de Anthony Bourdain. Talvez ele invejasse a nossa.