Privatização
TAP: um pouco mais de Azul
NEELEMAN Americano nascido no Brasil venceu a privatização FOTO REUTERS
Ao contrário do poema de Mário de Sá-Carneiro, desta vez não foi quase, foi mesmo. O dono da Azul vai ser dono da TAP. A empresa que custa muito dinheiro a quem compra e dá quase nada a quem vende vai ser privatizada. Se a esquerda não esgalhar um golpe de asa. Ou um golpe na asa.
TEXTO PEDRO SANTOS GUERREIRO
Alguma coisa mudou de 2012 para 2015. Talvez tenha sido a última greve dos pilotos, que indispôs muita gente. Ou talvez tenha sido a consciência das dificuldades financeiras da companhia, que se agravaram entretanto. Desta vez, como as sondagens mostram, há divisão sobre a privatização da TAP; há três anos soava a unanimidade: uma enorme maioria era contra. Mas a pergunta é sempre a mesma: isto é bom para a TAP e para Portugal?
Pelo sim: porque o país precisa de uma TAP forte, capitalizada e integrada numa rede maior e só a privatização o garante, pois o Estado está constrangido de investir. Pelo não: porque o país precisa demasiado da TAP para arriscar perdê-la para privados que possam mudar o seu destino, e o governo está a abdicar de geri-la. São estas as linhas mestras da argumentação das últimas semanas (e dos últimos anos) sobre a privatização. Mas até o PS mudou de ideias: hoje é favorável à privatização, só está contra a percentagem.
A posição do PS é importante também para perceber até que ponto o negócio aberto hoje em Conselho de Ministros será fechado dentro de meses. Até lá, as autoridades nacionais e europeias de concorrência e de aviação terão de validar a operação mas até lá há também eleições legislativas. Se o PS, que lidera as sondagens, vencer, o que fará? Tecnicamente, é possível reverter o negócio, embora com custos para o Estado. O PS acredita que conseguirá convencer o comprador a baixar a participação adquirida, de 61% para 49%. Mas como o contrato concede uma opção de compra a David Neeleman dos remanescentes 34% da empresa daqui a dois anos (recorde-se que há 5% destinados a trabalhadores), na prática o PS estará a pedir que o dono da Azul deixe de comprar 95% da TAP a dois anos para ficar com apenas 49%. Não são “amendoins”.
“Amendoins” é aquilo que o Estado vai receber: 10 milhões de euros não é ter lucro, é ter as despesas pagas. Mas embora o valor possa parecer baixo e chocar muita gente (são dois anos de salário de Jorge Jesus…), o governo está a ser coerente, pois desde o princípio que o Ministério da Economia disse que não o encaixe para o Estado era secundário e que todo o esforço financeiro deveria ser dirigido para dentro da própria TAP. É isso que acontecerá: cerca de 350 milhões de euros vão capitalizar e reduzir o passivo de longo prazo da companhia portuguesa, que tem um passivo total na ordem dos 1,5 mil milhões de euros. Sobretudo, a empresa tem hoje capitais próprios negativos em 550 milhões de euros, o que significa que se vendesse tudo o que tem (o ativo) para pagar tudo o que deve (o passivo) ainda ficaria sem poder pagar 550 milhões. Foi isso que David Neeleman também comprou, esse “buraco”. Daí a diferença entre o Estado receber tão pouco e Neeleman assumir um encargo tão alto. Aliás, não se conhecem ainda as condições da proposta no que toca ao passivo, mas como o Expresso já noticiou, pressupõe-se uma reestruturação da dívida que não pode deixar o Estado de fora. Há 400 milhões de dívida a vencer nos próximos meses, período durante o qual a empresa ainda é estatal.
A proposta de Neeleman não jorra, no entanto, dinheiro sobre a TAP, apenas a vaporiza de alívio. O aumento de capital não é aliás suficiente para tirá-la da situação de falência técnica, pelo que a empresa terá entretanto de gerar resultados suficientes para equilibrar a sua situação. Só que Neeleman garante que, além de resolver o problema imediato de descapitalização, a TAP terá mais de 50 novos aviões, que alargarão e rejuvenescerão uma frota hoje envelhecida, em prejuízo do conforto dos passageiros, dos serviços prestados a bordo e da quantidade (e portanto custo) em combustível. Além disso, se a Azul ganha acesso a mercados europeus, a TAP ganha alimentação a partir do Brasil – e possível melhor acesso ao mercado norte-americano.
É com base nesta argumentação que o governo defende a sua opção: compara com o que aconteceria se não houvesse privatização. E o que aconteceria, diz, seria uma reestruturação levada a cabo pelo próprio Estado que apequenaria a empresa. Aliás, a superação do problema deste verão, em que falta dinheiro à empresa, já passa pelo encerramento de rotas transportadas.
Mais capital, mais aviões, reestruturação de dívida e acesso a mais mercados parece ser bom para a TAP. Mas, usando uma citação famosa (e aliás adulterada, mas isso não vem ao caso) sobre a General Motors, podemos questionar: o que é bom para a TAP é bom para o país? Sim, se a TAP continuar a fazer de Portugal uma plataforma de distribuição de voos, para que traga e leve turistas e pessoas em negócios. Ora, nas condições previstas não há perpetuidade nem quanto à marca TAP nem quanto ao “hub” de Lisboa, pelo que terá de ser também a racionalidade económica do projeto a prevalecer. Esta é, aliás, uma das inquietações do PS.
“Um pouco mais de sol - e fôra brasa/Um pouco mais de azul - e fôra além”, escreve Mário de Sá-Carneiro em Quási, um poema sobre o fracasso e sobre o “golpe d'asa” que faltou. Faltam ainda meses até ao fecho da operação, mas o governo de Pedro Passos Coelho, de Pires de Lima, de Maria Luís Albuquerque e sobretudo de Sérgio Monteiro – o secretário de Estado que mais se empenhou neste processo - deixa decidido o que parecia impossível: a venda da TAP a privados, num projeto controlado por estrangeiros.