Entrevista
Pedro Cabrita Reis
“A arte contemporânea é um longínquo país afastado das pessoas”
Não é normal, mas aconteceu falar-se primeiro de palavras e da arte das palavras, antes mesmo de se falar de arte, e o que se esperava ser uma conversa de uns quinze minutos sobre a nova exposição na cooperativa Árvore, onde se apresenta por uma questão ética e de cidadania, acabou por se transformar numa longa e curiosa entrevista
Texto Valdemar Cruz Foto Rui Duarte Silva
Chegou todo janota. Não é uma atitude. Será antes um estado de espírito. O prazer da vida materializa-se, também, naquela sedução contida na estética do vestir. Com chapéu em fundo. Pedro Cabrita Reis gosta de falar, e de escrever, e de sentir a arte de todas as maneiras. Como se vê nesta conversa sem rede e sem guião. Ao sabor do tempo. Ao sabor das palavras, porque foi de palavras que começou por se falar. Inesperadamente.
Há um motivo para andar há anos a compilar as suas conversas, as suas entrevistas, as suas palavras?
Sim. São Palavras de Cabrita Reis. Palavras. Só isso.
Gosta muito de falar?
Provavelmente demais. Não gosto muito de falar para as paredes, embora toda a vida tenha acontecido isso. Gosto de falar. Tenho esta arrogância da oratória perante os outros. Já é tarde demais para me corrigir.
Há aí um discurso construído, ou que se vai construindo a cada momento?
Vai-se construindo a cada momento. Ao longo da vida faz-se sempre a mesma coisa. Diz-se, por ironia, que os pintores pintam sempre o mesmo quadro. Provavelmente os escritores têm sempre o mesmo argumento, trabalham em torno dele de formas diversas e voltam sempre às mesmas coisas. Se calhar é verdade, mas é capaz de haver um osso, uma estrutura mental, ou política ou cultural, ou estética, ou meramente vivencial. E está lá. Com certeza que sustenta ao longo da vida toda. Pode ir apresentando variações, mas se calhar são variações de uma coisa.
O que é essa coisa?
Em arte é provável que isso também se verifique. Ao fim e ao cabo o modo como se constrói uma relação com o mundo, com os outros e, por inerência, contigo próprio. Na maneira como te entendes, como te conheces, como vais aprendendo de ti, sobre ti. E isso tudo plasma-se no desenho, na oratória, na maneira como te relacionas com as pessoas, nas esculturas. É uma espécie de olhar expandido e abrangente.
Esse discurso já se expressa nos diferentes suportes da criação artística, mas a palavra é ainda reivindicada de uma forma muito acentuada?
É um facto. Talvez porque gosto de escrever. Tenho uma propensão para escrever e falar que é mais que apenas a conversa. É uma tentativa de compreensão e formatação do mundo. Uma obra de arte de alguma forma transforma o mundo e devolve-o às pessoas com essa transformação incluída. Essa transformação aumenta a forma como as pessoas veem o mundo. A ferramenta desse olhar sobre o mundo é a obra de arte que o traz às pessoas. Gosto de fazer isso com as palavras. Escritas ou ditas. Não posso furtar-me, para o bem e para o mal, a um debate, a uma conversa, ao uso da palavra que tem ambições. É inevitavelmente propositivo.
Há um tempo definido para a escrita?
Escrevo todos os dias nos meus cadernos. Onde também colo bilhetes de museus, colo recortes da imprensa. Hoje em dia, a maior parte dos artistas mais jovens não o tem. Não usa isso. É provavelmente olhado com alguma condescendência e ironia. É um avatar do tempo que já acabou. Continuo a gostar de fazer livros. E tenho muitos. Convidei uma jovem universitária a transcrever esses livros. Num futuro muito próximo vamos ver como poderíamos replicar para os publicar. São complexos. É um “bric a brac” de coisas. Tenho desenhos, tenho colagens, coisas escritas. Considerações banalíssimas, quase como registo diarístico. Depois, de repente, tem um parágrafo mais aprumado, com umas coisas importantes para dizer ao mundo. Que não valem nada, obviamente, mas que a mim me dão grande prazer em escrever. É quase diário. A coisa embrenhou-se de tal forma na minha maneira de estar, que quando estou dois ou três dias em que não volto ao caderno para escrever, porque não posso, começo a sentir-me nervoso. Tornou-se um imperativo fazer aquilo.
Faz isso desde quando?
Desde os anos setenta. Há livros com tempos diferentes. Num ano posso ter três ou quatro cadernos.
São escritos apenas impressivos, ou reflexões críticas também sobre a arte e para lá do mundo da arte?
Aparecem reflexões, mas são basicamente registos simples das coisas que se fazem dia a dia. Por exemplo hoje, de certeza vou registar que cheguei à cooperativa Árvore e tinha o jornalista Valdemar Cruz à minha espera, com quem tive uma conversa que começou, espante-se, pela palavra, quando o que devíamos falar era da exposição. Isto é para ser escrito mais ou menos nestes termos.
É paradoxal começar pela palavra?
Não é paradoxal, mas não deixa de ser muito interessante e curioso. Foi uma aproximação inusitada e criativa. Gostei.
A minha questão sobre aquelas reflexões escritas resulta da constatação de que há em muitos artistas um discurso muito crítico face à ausência no espaço mediático da crítica concebida pró outros, exteriores ao universo artístico…
Percebo isso. Imagino que essa queixa tem uma base de legitimidade. No meu caso particular posso hipoteticamente aliar-me a ela quando oportuno, porque ela é a guarda avançada de um problema bem mais vasto: a relação das práticas criadoras com a comunidade, com a sociedade. Daí deriva o debate sobre se devem ou não as práticas artísticas ser acompanhadas financeiramente pelo Governo, ou se devemos antes pensar, no quadro do neoliberalismo, que os artistas terão eles próprios de descobrir formas de materializar a sua criatividade com sucesso e visibilidade. As pessoas queixam-se que não há nos órgãos de informação um espaço para o exercício da crítica sobre as artes plásticas. Não é tanto a circunstância de não haver quem o possa fazer, porque haverá. Esse texto crítico ocorre noutros territórios, na Universidade, em fóruns de debate. O que se passa é que há uma lógica economicista na gestão dos media e da informação que cada vez mais faz com que áreas que não tenham imediata rentabilidade económica em termos de publicidade, número de leitores ou outros fatores da área económica, é natural que se as artes plásticas interessam a 10 pessoas e o futebol interessa a 10 mil, as páginas do futebol têm tendência a ser maiores. Ou, por exemplo, em publicações que conhecemos, se em suplementos ditos culturais semanais, um número verdadeiramente esmagador de páginas é dedicado aos aparentes e alegados sucessos musicais, deve-se a uma política de lóbi das companhias discográficas e editoriais, que sob o manto diáfano da crítica musical, na prática estão é a ter publicidade grátis para a venda dos seus roqueiros.
As galerias de arte não perceberam isso?
Não. Não perceberam que têm de ultrapassar o estado primitivo de concorrência medíocre e ridícula e têm que imaginar que se de facto querem marcar um território de promoção dos seus artistas e da sua atividade cultural e económica, têm que ultrapassar esta fase bacoca e pateta de rivalidade.
Os media distanciaram-se, acompanhando o sinal dos tempos?
Sem dúvida. Nos anos 80 por circunstâncias próprias do tempo e da natureza das movimentações sociais, as artes plásticas tiveram um momento de glória na imprensa escrita, como o Expresso, que sempre foi uma publicação de referência. Havia claramente atenção, espaço e acompanhamento das artes plásticas. Havia uma situação de protagonismo positivo. O tempo traz coisa novas e diferentes à medida que se transforma. Os tão famosos “wahrlianos” 15 minutos de fama das artes plásticas, passaram. Não se conjuga já um verbo entre os artistas plásticos e os media. Os grandes escritores continuam a ter cadernos inteiros, os músicos e o cinema também, mas as artes plásticas estão num momento de maior serenidade e ausência dos media.
É compatível a serenidade com a ausência?
Serenidade é talvez uma palavra bem educada. Diria antes esquecimento. Agora há luzes e atenção convocadas para coisas que não são interessantes, como a Feira de Arte de Lisboa. É algo que se dissipa rapidamente após a inauguração. É um objeto mundano, de mercado. É uma feira, é uma situação mercantilista em que as galerias trazem os seus artistas e exploram as redes que posam estar disponíveis. Sei que o tema dessa atenção pelas artes é derivativo, não é pelas artes como prática, mas sim pelo mercado, pelas cosnequências económicas, sociais, mundanas.
O que se passa não é, também, o resultado de um certo distanciamento das pessoas, até em função do que é hoje a perceção sobre a arte contemporânea, no seio da qual polulam artistas que vivem eles próprios em função de uma certa mundanidade?
Não conheço nenhum artista cuja prática seja reconhecida pelos seus pares que viva dessa mundanidade. Há pessoas que vivem dessa mundanidade e laboram nas artes plásticas, não fazendo isso delas artistas. São os nomes que estão nas bocas do mundo pelas razões que não interessam aos artistas, nem à arte. São pessoas com um desenho estratégico claro de afirmação mundana e projeção mundana de forma organizada e sustentada. É interessante sociologicamente acompanhar esse tipo de processos, mas isso não faz deles matéria de interesse sob a perspetiva da criação artística, ou da filosofia da arte ou de um debate sobe estética. São casos de estudo no plano meramente sociológico.
E a questão da receção da arte contemporânea?
Sim, essa parte em que nos voltamos a perguntar pela enésima vez o que aconteceu entre as pessoas e a arte? Porque é que a arte contemporânea é um longínquo país afastado das pessoas, de onde as pessoas ouvem uns ecos remotos, mas para o qual não viajam porque à partida acham que é um sítio estranho e onde nada têm a fazer…
É uma pergunta ou uma afirmação?
Isto é uma afirmação. Mas devo dizer que se olharmos para trás, foi sempre assim, com a arte, com os artistas, à exceção daqueles que pela sua prática também se tornam notórios pelo seu recorte mundano. É o caso de um Picasso, que era tão importante enquanto artista, como pelo seu recorte público. As mulheres, as touradas, a ligação com a política, o desenho da pomba. O Picasso teve muito positivamente, ao contrário de outros, uma performance, um eco. Deixou uma massa crítica de atitude e comportamento quase tão importante quanto a obra. É no encontro entre estas duas linhas que nasce a palavra Picasso. Que é uma palavra conhecida por todas as pessoas. Repara nesta história: há uns anos fui a Praga fazer uma exposição. Apanhei um táxi no aeroporto e o taxista arranhava inglês o bastante para se propor mostrar-me a cidade até chegarmos ao hotel. Lá ia apontado, dizendo que esta ponto isto, aquela igreja aquilo, e de repente passa por um edifício não muito grande, mas de arquitetura contemporânea, e diz esta frase extraordinária: ‘e também temos aqui arquitetura à Picasso’. Saiba-se que o edifício era uma obra do princípio de carreira de Frank Ghery.
Qual a moral dessa história?
O que releva daqui é que provavelmente aquele taxista nunca terá visto, nem sequer reproduzida numa revista, uma pintura de Picasso. Contudo, o nome Picasso representava para ele qualquer coisa onde se alojariam ideias, conceitos e práticas de rotura, de transformação e estranhamento. Isso é a eternidade. A eternidade não é ter obras no museu. É estar na boca de um taxista que passa e, daqui a cem anos, dirá aos seus clientes: ‘há, também temos aqui uma arquitetura à cabrita Reis’. Isso é ironicamente, mas não tão longe da verdade como isso, a verdadeira fixação do território onde as pessoas encontram a prática da arte.
Mesmo que não seja deliberado, há em si sempre essa busca do fator estranhamento?
Devo confessar que, como qualquer outro artista, tenho tido ao longo da vida todo o tipo de comentários. Desde ‘isto até a minha filha fazia’, o mais comum, até outros diferentes, que parecem detetar no meu trabalho uma qualquer proximidade. Provavelmente porque muitas das minhas peças, de escultura, por exemplo, envolvem na sua construção elementos reconhecíveis, que as pessoas identificam na sua vida real. Aí reconhecem que há um uso inesperado para elas de coisas que reconhecem. Neste território de hesitação, perguntas e equilíbrio entre identificar componentes de uma obra de arte, ficam perplexos pela forma como esses componentes, que vêm de um mundo que diríamos real por comodidade de expressão, se transportam para um mundo também real, mas num diferente patamar, que é o lugar onde se expõe arte: a galeria, o museu, a praça pública em domínios de arte pública. Aí acho que a minha obra tem trazido ao pensamento das pessoas uma série de perguntas que radicam nessa espécie de inesperado e ao mesmo tempo reconhecido. É isso que quero. Isso dá-me uma grande alegria. Ao identificar uma janela num museu como sendo parte de um tal Cabrita Reis que viram, quando saem do Museu e se deslocam para tomar um café no bar em frente, provavelmente olham para as janelas e, de repente, é feito um curo-circuito entre o que viram e o que estão a ver e a forma como podem rever, de uma maneira diferente, a realidade da qual transitam a partir de uma experiência inusitada que tiveram no Museu. Se isso acontecer, acho que já fiz muito.
Falemos então desta exposição. Porquê uma mostra como esta na cooperativa Árvore?
Um dia vinha com o Jorge Pinheiro no comboio para o Porto e nas devesas, em Gaia, ele diz-me que vai almoçar com os seus amigos da Árvore. Creio que ele é um dos primeiros sócios da cooperativa. Diz-me que tem a Laura Soutinho à espera e outros. Então eu digo que também quero ir. Almoçamos, a conversa ficou animada e então perguntam-me se não quero fazer uma exposição na Árvore. Ao que respondi: ‘estava a ver que não me convidavam’…
Porquê?
Aceitei este convite com muita honra e grande sentido de responsabilidade. A Árvore é um lugar incontornável. Como todas as casas desta natureza tem, ao longo da sua longa história, altos e baixos. É normal. É um corpo vivo. Mas não se pode dizer que não a um lugar que foi um lugar de resistência ao fascismo, que foi brutalmente ferido em 1976 por uma bomba, onde se realizaram encontros em que se falou de poesia, literatura, expuseram-se artistas. Resistiram. Continuaram durante muitos anos. Esta casa tem que manter-se sempre como um reduto de pensamento, de criação e de liberdade. Ou seja, de cidadania. Na minha história, como pessoa ou autor, não tenho nada que ver com isto, mas tenho tudo a ver com isto, porque não se pode eticamente dizer que não quando é preciso estar com eles. A Árvore é para continuar. Eu quero fazer parte da continuação. Até porque a árvore faz parte da história de Portugal. É um marco e é um sítio que está vivo. Nem me importaria de presidir à cooperativa, caso residisse no Porto. Se isso acontecesse, não faltaria às minhas responsabilidades.
Que exposição é esta?
Tem um conjunto de peças em cerâmica, brancas, que foram feitas de propósito nas oficinas da Árvore para haver uma ponte real e física entre mim como artista e a casa. Vim aqui às oficinas, embora houvesse outras oficinas disponíveis. A cerâmica interessa-me mais que outras práticas disponíveis. Fiz cerâmica com a Árvore, para a Árvore e na Árvore. Fiz os bronzes que estão expostos, que são inéditos. Foram feitos a pensar apresentar aqui. É a premeria vez que vão ser mostrados. Fiz um conjunto de trabalhos em papel, entre gravura e desenho, que ofereci à Árvore para recolha de fundos. Nascem de fotografias de telemóvel de situações daqui da Árvore. Nesse almoço, fomos até ao jardim para o meu inevitável charuto e vejo umas camélias pelo chão, umas laranjas que caem das árvores. Resolvi logo ali fazer três ou quatro fotos e vim a usar esse material que se transformou naquilo que é “Sweet Árvore. Ofereci duas edições à cooperativa. Tal como, do conjunto de nove cerâmicas, doei duas à Árvore. Também há as pinturas a acrílico preto sobre uns fósseis do século XIX encontrados na zona de Lisboa. Foram feitas a partir de um livro publicado no final do século XIX que encontrei por acaso num alfarrabista junto ao arco da Rua da Rosa.
É uma exposição diferente do habitual…
Sim, pela primeira vez há uma revelação de pequeno formato. Está entranhada a ideia de que faço coisas fora de medida. Também é verdade. Mas não é a verdade toda. Esta casa é o local ideal. A casa em si, como objeto arquitetónico, é muito interessante. E tem uma escala doméstica que me interessa. Essa escala doméstica, apercebi-me posteriormente, determinou esta dimensão e este trabalhar numa escala mais reduzida e mais tátil. Outra coisa desta exposição é que considero isto como uma continuação do que reconheço ser uma ética de cidadania. É na ação prática que se constrói essa cidadania e essa ética. Estou aqui porque a Árvore está aqui há muito tempo e a Árvore é um modelo de comportamento sob muitos aspetos. Quero fazer parte dessa história.