FAKE NEWS
Eric Frattini
“É fácil imensos idiotas formarem a opinião pública”
Foto d.r.
O escritor espanhol, especialista em serviços secretos e com queda para desvendar mentiras, conversou com o Expresso sobre notícias falsas, demagogia e (des)informação
Entrevista PEDRO CORDEIRO
Em “Manipulação da Verdade” (Bertrand), Eric Frattini revisita mais de um século de operações de falsa bandeira, isto é, golpes de Estado que afinal foram organizados por regimes para se reforçarem, ataques militares com fins distintos do que parece óbvio, num rol que vai do incêndio do Reichstag ao recente “autogolpe” turco. Em Lisboa para apresentar o livro, falou de duas obsessões suas (serviços secretos e Vaticano) mas também dos tempos que vivemos.
Ao ler o seu livro percebe-se bem que as “fake news” não são nada de novo.
Longe disso. Foram inventadas por Nero, que queimou Roma e culpou os cristãos. Foi uma operação de falsa bandeira. Os serviços de segurança e a CIA não inventaram nada, apenas modernizaram o que havia.
Porque volta esta tendência, hoje, quando há tanta ferramenta para apurar a verdade?
Nos anos 60 ou 70, obtínhamos notícias de cinco jornais, dois canais de televisão e três postos de rádio. Agora há 200 mil meios de comunicação, dos quais só dez continuam a ser fiáveis. E o que leio na Internet? Se calhar, “The Washington Post”, “El País”, “El Mundo”, o “ABC”, talvez o Expresso… as minhas fontes são as mesmas, mas no ecrã em vez de em papel. O que me dá segurança é o título. Mas nem todos os cidadãos são tão seletivos. Às vezes alguém surge com uma informação e pergunto de onde a sacou. “Ah, li na Internet”. Mas aonde na Internet?! Tanto pode ser o blogue de um louco como “The New York Times”. É como com os jornais. Lemos o Expresso ou o gratuito que distribuem no metro?
Muita gente não faz a distinção, ou fá-la apenas pelo dinheiro que gasta.
É a questão da cultura. Noutros tempos, para saber algo sobre a Jugoslávia, tinha de ir procurar na enciclopédia. Hoje, começo a escrever no Google, e mesmo que dê um erro, ele pergunta “Quis dizer Jugoslávia?”, e isto para não me chamar idiota. Isto torna muito mais fácil que imensos idiotas formem a opinião pública. E tanto vale o idiota que não lê jornais, como eu, que leio seis jornais diários. A informação é aberta, mas menos seletiva.
O aumento de quantidade não implica qualidade.
Claro que não. Por exemplo, se quero informar-me sobre política americana, leio o blogue de George Stephanopoulos, que foi chefe de gabinete de Bill Clinton e analista na CNN. É um tipo que sabe do que está a escrever. Também posso começar um blogue de mecânica, porque o acesso é livre, embora não saiba nada do assunto.
E não há controlo editorial nem verificação dos factos.
Isso é jornalismo. Mas nem tudo é jornalismo. Há tempos, em Espanha, alguém escreveu no Twitter que o cantor Miguel Bosé tinha morrido. E até jornalistas prestigiados repetiram a notícia e lamentaram o desaparecimento de um artista que, afinal, estava vivíssimo. Até diziam que a causa da morte era sida!
Políticos e empresas ficam cheios de medo porque alguém escreveu um tweet. Não porque a capa de um jornal diz que os produtos de um supermercado estão todos caducados
A rapidez da partilha e da reação faz, por vezes, passar vergonhas…
Não há controlo de qualidade. Num jornal há um editor, um diretor, uma cadeia de responsabilidades. Se um redator se engana, alguém dirá “olha, acho que isto que aqui escreves não aconteceu neste ano”. Os meus livros têm um editor que me chama a atenção para imprecisões, etc. Porque se me enganar e escrever que o golpe de Estado falhado na Turquia foi em setembro (quando, na verdade, foi em julho), o leitor deixa de poder acreditar no resto do livro. O vilão de um romance meu diz que a opinião pública é a pior de todas. E às vezes é, porque é formada por muita gente, culta ou inculta, mais ou menos influenciável.
Como se vê em eleições e referendos recentes.
Sobretudo a de Trump. Mas aí temos de nos perguntar: o que conhecemos dos Estados Unidos? Não basta ter ido uma vez a Nova Iorque ou Washington. São bolhas. Quem der uma volta pelo Minesota, Texas ou Arcansas perceberá melhor porque votaram em Trump. Também esses eleitores fazem parte da opinião pública. Por isso desconfio tanto dela.
Mas os políticos privilegiam-na cada vez mais.
Políticos e empresas ficam cheios de medo porque alguém escreveu um tweet. Não porque a capa de um jornal diz que os produtos de um supermercado estão todos caducados. Hoje, os problemas de reputação podem nascer da publicação de um tipo que tem uns quantos seguidores, não é preciso serem milhares.
Critico sempre quem diz “este político é um ladrão”. Em democracia, um primeiro-ministro chegou lá por eleições, não por golpe de Estado. O problema não é o político ser corrupto, é aqueles que votaram nele serem atrasados mentais
Em democracia é suposto ter-se em conta a opinião de todos, mas hoje substitui-se parte da democracia representativa por uma febre de referendos que reduzem questões complicadas a “sim” ou “não”…
Critico sempre quem diz “este político é um ladrão”. Em democracia, um primeiro-ministro chegou lá por eleições, não por golpe de Estado. O problema não é o político ser corrupto, é aqueles que votaram nele serem atrasados mentais. Depois são os primeiros a protestar… e se um político cai em desgraça, é impossível encontrar alguém que tenha votado nele. É como na Alemanha depois da guerra, não havia um único nazi.
Todos os dias tentam impingir-me tretas, nas redes sociais e não só. Mas eu não sigo pistas. Decido fazer uma investigação, concentro-me e não me deixo distrair por informação que não solicitei
Como faz para cobrir, nos seus livros, assuntos que vão da Mossad à vida sexual dos papas?
Na verdade cubro três assuntos: Vaticano, terrorismo e serviços secretos. Depois há muitas variações.
Como seleciona as suas fontes?
Todos os dias tentam impingir-me tretas, nas redes sociais e não só. Mas eu não sigo pistas. Decido fazer uma investigação, concentro-me e não me deixo distrair por informação que não solicitei. Sou muito desconfiado, tenho as minhas próprias fontes e trabalho sozinho, para mim - e não para qualquer meio de comunicação. Falo com pessoas como espiões. Acabo de estar com o espião Jorge Silva Carvalho, muito polémico neste país mas um grande amigo. E faço o mesmo, todos os dias, em Madrid. Frequento almoços em que se discutem operações policiais. Sabem que sou jornalista mas confiam em mim, sabem que não porei em risco a segurança nacional.
Primeiro rejeita-se os partidos tradicionais, por governarem mal, por serem cada vez mais corruptos, etc. E aparecem estes grupos populares, que me assustam, porque propõem soluções fáceis
Qual é o limite a partir do qual o jornalista tem de dar uma informação que pode pôr em causa um regime político?
Uma violação da democracia ou dos direitos constitucionais. Aí temos de falar, de agir, e a nossa arma mais eficaz é a pluma.
É certo, mas ao fazer jornais com menos dinheiro e com redatores menos qualificados, a função de vigilância fica em risco.
Os jornalistas têm cada vez menos preparação, leem menos, sabem menos. E às vezes não os deixam fazer jornalismo a sério, porque não são independentes. Se se quiser denunciar, por exemplo, a política de recursos humanos despótica de uma cadeia de supermercados, ou uma megafraude num banco, isso pode ser impedido por medo de perder milhões de anunciantes. Até porque, infelizmente, a opinião pública dificilmente se mobiliza. Por um lado, porque muita dela vive bem. Apesar da crise, os nossos países mantêm um Estado de bem-estar. Há dificuldades mas há mínimos de saúde, educação e segurança que estão assegurados. Por outro lado, porque com os problemas que têm, os cidadãos pouca atenção prestam a essas questões, e muito menos estão dispostos a ir mudar de banco ou de supermercado…
Entretanto o populismo, muito apoiado pelas notícias falsas, cresce em toda a Europa, beneficiando da rejeição dos partidos tradicionais.
É um ciclo. Primeiro rejeita-se os partidos tradicionais, por governarem mal, por serem cada vez mais corruptos, etc. E aparecem estes grupos populares, que me assustam, porque propõem soluções fáceis – do género “expulsem-se os imigrantes e todos teremos trabalho” – ou popularuchas, como as do Podemos em Espanha, que dizia querer “limpar a política”. Mas depois corre tudo mal, consomem-se em lutas internas e pouco fazem. E muitos eleitores regressam aos partidos convencionais. Isso travou a ascensão do Podemos em Espanha.
Acabei por cobrir 17 guerras como correspondente, e isso fez com que deixasse de acreditar em Deus. Nos sítios por onde passei, ele estava ausente
Em Portugal temos uma rara coligação de esquerda.
Em Espanha diz-se que o pior da esquerda é a esquerda…
E no Peru, país de que também é cidadão?
Nasci em Lima mas saí do país com nove meses. Vou lá frequentemente. Na América Latina houve a onda dos partidos populistas, porque as pessoas estavam fartas da corrupção das forças convencionais, mas estes estão a regressar: Macri na Argentina, Kuczynski no Peru… passou-se o mesmo com o Batasuna no País Basco. Em 2011 conquistaram a Câmara de San Sebastián, mas governaram tão mal que o eleitorado os mandou embora passados quatro anos. Em Madrid a Câmara é do Podemos e a cidade está um nojo.
De onde surge o seu interesse por assuntos religiosos?
Não tenho fé, apesar de ter tido formação católica. Graças a Deus andei numa escola de missionários, com uma mentalidade muito aberta, totalmente diferente da do típico colégio religioso. Foi um padre, diretor de estudos, que me disse que um dia havia de ser escritor. Os professores passavam as férias noutras partes do mundo, em missões, no Congo, na Guiné… acabei por cobrir 17 guerras como correspondente, e isso fez com que deixasse de acreditar em Deus. Nos sítios por onde passei, ele estava ausente.
Papa Francisco? Coitado! Não pode fazer nada. O problema é catalogarmos o Vaticano com os conceitos aplicáveis à democracia
E o Vaticano?
Sou muito criticado pelo Opus Dei ou pelos Legionários de Cristo, mas respondo sempre que não escrevo sobre Deus. Deus me livre! Só me debruço sobre a política do Vaticano, e noutro livro sobre o sexo. Falo de manipulações no banco da Igreja, relações com a CIA, de um Estado que foi muito opaco até aos anos 80. Não faço a avaliação dos Dez Mandamentos!
Nota alguma diferença com o Papa Francisco?
Coitado! Não pode fazer nada. O problema é catalogarmos o Vaticano com os conceitos aplicáveis à democracia. Veja, se o PS perder as próximas eleições, talvez saia o primeiro-ministro, os ministros, secretários de Estado, diretores-gerais, etc. Mas quando muda o Papa não é assim. Os cardeais continuam. Bento XVI saiu mas o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé continua a ser Müller. Chegou Francisco e as pessoas disseram, estupidamente, “este é mais liberal”. São todos conservadores! E Francisco é menos conservador, mas esbarrou em Müller. E mandou embora o secretário de Estado, Tarcisio Bertone, mas ele continua a controlar o aparelho económico e financeiro. Acho que Francisco vai acabar por renunciar. Até já disse que um bom papado dura oito anos.
Já não temos, enquanto jornalistas, de contar que aconteceu isto ou aquilo. Qualquer pessoa que ande na rua com um telemóvel consegue fazer isso. Nós temos é de explicar como e porque acontecem as coisa
Voltando ao seu livro, se as operações de falsa bandeira existem desde Nero, porque é que continuam a ter êxito?
Agora é muito mais fácil levá-las a cabo. Erdoğan começou uma operação dessas em setembro de 2013, que conduziu ao autogolpe de julho do ano passado. Incluiu, ainda, a demissão do primeiro-ministro Ahmet Davutoglu, que quis impedi-lo de mudar a Constituição. E agora vai mudá-la por referendo, concentrando em si todo o poder.
Daí a importância do trabalho de contextualização do jornalista.
Em Espanha disseram que eu tinha feito uma boa cobertura do golpe turco. Fi-la através do Twitter, com fontes turcas que agora estão na cadeia. Há 72 mil presos na Turquia, pós-golpe, de que pouco se fala. E dois deles iam-me passando informação sobre o que se passava, minuto a minuto, através do WhatsApp. Eu estava em Madrid, era de noite, e ia traduzindo o que me diziam. É a vantagem de ter fontes fiáveis.
O paradigma mudou.
Por isso já não temos, enquanto jornalistas, de contar que aconteceu isto ou aquilo. Qualquer pessoa que ande na rua com um telemóvel consegue fazer isso. Nós temos é de explicar como e porque acontecem as coisas. É um ofício que se está a perder e cujo resultado, se calhar, não interessa a muitos. As pessoas não percebem até que ponto algo que se passa longe pode afetá-las. Dou um exemplo: na altura da Primavera Árabe temi que se transformasse num longo inverno para a Europa. E continuo pessimista em relação aos efeitos que terá para nós.