A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
Armas: a cultura antes do lóbi
Perceber a América vermelha
Uma narrativa confortável diz-nos que os americanos são loucos por armas apenas e só porque são enganados pelo grande lóbi das armas, a NRA; nesta visão, os americanos são títeres passivos dos trinta dinheiros que a NRA espalha pelo bolso de senadores e congressistas. A teoria conforta, mas também cega. É evidente que a NRA é um dos lóbis que corrói a república, mas surge a jusante. A montante, encontramos um lastro cultural a favor das armas; o fetichismo das armas é orgânico, é inerente a diversas culturas americanas, desde a cultura do rapper negro até à cultura do hillbilly branquíssimo que vive enamorado pela sua M16 e que, pior ainda, vive convencido de que os pais fundadores criaram a segunda emenda para que ele pudesse ter à sua disposição Toys R Us de M16 e AK-47.
O fetichismo das armas é orgânico, é inerente a diversas culturas americanas, desde a cultura do rapper negro até à cultura do hillbilly branquíssimo
A cultura do faroeste nunca desapareceu. O espírito cowboy permaneceu naquelas vastidões. E, agora, esta cultura da rebeldia do cowboy perante os poderes do estado é reforçada pela chamada cultura pós-apocalíptica e pós-industrial que se apoderou da América hillbilly. Basta ler o livro de J. D. Vance, “Lamento de uma América em Ruínas”, para compreender isto. Há um colapso da economia, do estado, da sociedade, da família, da condição masculina. Neste mar de ruínas, fábricas e casas abandonadas, vilas e cidades esvaziadas, neste ambiente meio zombi habitado por viciados, desempregados e desesperados, o homem americano agarra-se à sua arma como nunca, porque vê ali uma segurança, porque vê ali o que resta da velha América que ele idolatrava. Desde “A Estrada” de McCarthy até à série “Walking Dead”, os autores americanos têm ilustrado este desespero que se reflecte numa estética pós-apocalíptica que substitui os índios pelos zombis. A ideia porém é a mesma: vive-se num estado da natureza e não num estado de direito, logo a arma é necessária; os filmes e séries pós-apocalípticas que Hollywood produz em série hoje em dia são revisitações dos códigos do velho western, que se mantém assim vivo no subconsciente americano. Acrescente-se ainda o desconforto de muitos homens ante a emancipação e empoderamento das mulheres; a arma funciona como uma marca identitária do verdadeiro homem, do macho alfa, daquele que manda.
Antes da conversa sobre o efeito corruptor do lóbi, há que falar desta cultura orgânica que parte de um erro hobbesiano: assume-se que ter uma arma dá segurança, quando a realidade é o exato oposto; ter armas aumenta a insegurança, a começar na insegurança dos menores. Como diz David Frum, um conservador que tenta salvar a honra do partido republicano, é por aqui que se deve fazer política. Não vale a pena diabolizar os trinta dinheiros da NRA se antes não for feita uma campanha cultural contra a opinião pública, contra o sentimento crescente de que a arma garante segurança e identidade a esta América interior que se sente abandonada pelo sonho americano das duas costas.